sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Uma História Estranha No Aeroporto

 (9, 10, 11 e 14 de janeiro)

Havíamos chegado ao aeroporto a boa hora. Na madrugada desse 30 de Dezembro o trânsito era ainda escasso, entráramos em Lisboa antes da confusão. Nem a separação no acesso à área apenas reservada a passageiros fora demorada, pois já que as crianças ficariam mais oito dias com os avós (para regressarem depois com o tio a tempo do início das aulas) a despedida para quem ficava nem tinha o mesmo sabor amargo. Tudo decorria sem peripécias.

                 

Ousadamente tínhamos deixado os miúdos com os seus documentos mas sem nenhuma declaração oficial a autorizar que viajassem com terceiros, apenas uma informal folha A4 assinada pelos dois, just in case. As regras em Portugal aplicáveis a viagens de menores com um progenitor ou com terceiros são bastante mais rígidas que nos outros países europeus. Por essa altura já sabíamos que no aeroporto costumam ser apenas os funcionários das companhias nacionais a quererem, ciosamente, cumpri-las. Mas mesmo sabendo que viajaríamos com a TAP, na altura em que comprámos os bilhetes de avião Oslo-Lisboa-Oslo limitei-me a ignorar que as crianças tinham o sobrenome do pai, usando apenas o meu (previsivelmente igual ao do meu irmão) e confiando em que sendo um apelido invulgar quanto baste e havendo mais uma criança no grupo de regresso partilhando o mesmo sobrenome (o meu sobrinho) passariam todos por uma grande e numerosa família feliz. A minha cunhada, a única de sobrenome distinto, passaria por mãe da criançada toda e ninguém levantaria questões. Ainda assim, no dia da viagem, fiquei vigilante, telemóvel sempre à vista, não fosse o diabo tecê-las. E quando um chinfrim interrompeu a minha leitura (aviso sonoro no máximo aliado a vibração sobre madeira) naquela manhã de fim-de-semana e vi o número do meu irmão no écran, caiu-me o coração aos pés. “Estamos com um problema...” e a voz firme fazia adivinhar uma inquietude grande, “...vais ter que nos vir buscar...” Interrompi-o, incrédula “A Portugal ?!” “Não, a Oslo. Perdi a chaves do carro.” Três segundos para processar. Não sei se ria se chore. Afinal a confusão não é por os miúdos estarem sem os pais? “E o check-in?” “O check-in o quê? Já mandei as malas e entrei com eles.” Ele nem percebeu a pergunta, ótimo! Continua a processar, miúda! Oslo. Oslo! Quatro horas e meia de carro. Ainda assim, mais perto que Lisboa! Só que nevara intensa e inesperadamente toda a noite o que fazia com que as estradas ainda não tivessem sido limpas. E no meu carro só cabem cinco, mesmo que viajasse sozinha até ao aeroporto no total seriamos seis. “Vou-te primeiro buscar a outra chave do carro” afirmei. “Estavam juntas, perdemos as duas. Agora vou só eu com os teus filhos, amanhã tenho compromissos e não podemos perder todos os bilhetes.” A chamada terminou e eu continuava embasbacada. Liguei ao meu pai que desconhecia detalhes, exceto que o problema se já apresentara ao nascer do dia mas na esperança de o resolverem não me tinham dito nada. Olhei para o relógio. Faltava menos de uma hora para embarcarem. As estradas são excelentes mas uma significativa parte do percurso na Noruega tinha (e continua a ter) velocidade limitada aos 60Km/h sendo que o valor da potencial coima não me dava vontade de tentar acelerar. Se me despachasse chegaria a Gardermoen ao mesmo tempo que eles. Com que cara iria trabalhar no dia seguinte? Depois se veria. Comecei a mexer-me. Preciso do passaporte, onde é que ele está? Nunca percebi se na Noruega o Cartão de Cidadão serve ou não, ainda para mais tenho o carro de matricula sueca ninguém me chateia, mas em qualquer local do espaço Schengen fora das fronteiras nacionais mostrar um passaporte em vez de um cartão acelera bastante as coisas. Preciso de levar um termo com café quente e outro com chá. Preciso de ir meter gasolina antes de andar. E o telemóvel tocou outra vez. “As chaves apareceram”, exclamou o meu pai, cauteloso “mas não sei se vai a tempo”. A minha cunhada dirigia-se agora furiosamente com o meu sobrinho de volta a Lisboa. Mochila às costas, chaves bem apertadas na mão, asas nos pés, o resto da bagagem já tinha sido toda despachada à conta dos 23 quilos a que cada um dos meus filhos tinha direito. Mensagem do meu irmão a apitar “O voo está 40 minutos atrasado!” Nunca me tinha sentido täo contente com as assíduas e inexplicáveis demoras da TAP. Esta veio a calhar! Nova aviso de Lisboatams tds embarcar, chegrm gora mesmo, c chaves. non precisas d vir” Puff, que alívio! Que quase aventura! Confirmei com os meus pais, tão atarantados quanto eu, que podia continuar quieta em casa. Final feliz!

Três meses mais tarde, quando fui sozinha a Portugal com os miúdos durante as férias da Páscoa, as coisas passaram-se de forma distinta. Dessa vez voáramos desde Gotemburgo, com escala. Evitámos o esticão de quatro horas de carro e saíra mais barato que um voo direto. Mesmo conduzindo desacompanhada, na madrugada escura, em más condições climatéricas e com dois miúdos a dormir no banco de trás do carro, as duas horas até Landvetter faziam-se num instante. Mas no regresso ao norte sucedeu que o primeiro voo, de Lisboa até Bruxelas, era operado pela TAP. Por um lado melhor comida, por outro lado ao fazer a entrega da bagagem quis o zeloso funcionário que se revisse o check-in. Compreendo os seus motivos, à face da lei, dos direitos das crianças e de tudo o resto. Mas o diálogo que se seguiu teve o seu quê de surreal. “A senhora
costuma viajar sozinha, assim, com crianças? Pode demonstrar que é a mãe?”, atirou com maus modos. “Costumo. Está aí o meu nome nos Cartões de Cidadão deles, pode verificar”, respondi já à defesa. “E o pai, onde se encontra?” “Está em casa, na Suécia. É para lá que vamos.” “E sabe que estão aqui no aeroporto?”, insistiu. “Espero que saiba, ele às vezes é distraído, mas ficou de ir ter connosco a Gotemburgo”. A minha vontade de cooperar esvaía-se. “E ele concorda com a viagem?” “Ontem ao telefone disse que tinha saudades, acho que concorda.” “Mas não é muito usual que uma senhora queira viajar assim, sozinha, com os menores.” A conversa estava à deriva, ele não me pedia documento nenhum, nem concretizava nada, apenas implicava. Já sem paciência para ironias olhei para ele de frente e perguntei se precisava de mais alguma coisa. E acrescentei que não era a primeira nem a segunda vez que viajava sozinha com os meus filhos. E que na viagem para Lisboa havia uma semana ninguém tinha apontado impedimentos. A triunfal resposta do senhor foi magnífica de tão absurda, “Mas é que à chegada a Lisboa eles eram portugueses!”. Continuei a encara-lo com perplexidade e só disse “E agora também são! Continuam a ser portugueses. Somos todos portugueses, qual é a sua dúvida?”. Ele pestanejou, parecendo confuso. Não disse mais nada, entregou-me os cartões de embarque e desejou-nos boa viagem. Mas desde então, quando viajo sozinha com eles, levo comigo quatro certificados em inglês emitidos pelo Skatteverket (o equivalente ao Ministério das Finanças) onde se confirma que todos nós temos residência permanentemente na Suécia para além do detalhado e bem elaborado papelinho assinado pelo pai (mas falho de carimbos oficiais, já que na Suécia nem nunca perceberam do que é que precisamos), a confirmar que posso andar por aí com eles.


Bom, mas estes dois episódios aconteceram posteriormente àquele dia em que passeávamos calmamente pelas Duty Free para gastar o tempo, sem peripécias nem preocupações. Que dessas, já antes experimentáramos que chegassem! Tínhamos tido outras aventuras, anteriormente e sentíamo-nos gratos por terem ficado para trás.

No Verão anterior, ainda fresco na memória, quase tínhamos perdido a viagem de regresso. Nessa ocasião chegáramos igualmente descontraídos, sem necessidade de controlar o relógio, mas era o primeiro dia de greve dos seguranças do aeroporto. O caos, que atingiria a sua plenitude e abriria telejornais nos dois dias seguintes, começara a desenhar-se em traços rápidos umas horas antes. Filas demoradíssimas para passar o raio-X, tardámos bem mais de duas horas num trajeto que nos piores dias nos tinha levado vinte minutos. E o horário de partida a chegar... e a passar... por muito! Assim que, desesperados e sem plano B, ultrapassamos todos os procedimentos de segurança consultamos os painéis informativos. “Last Call” piscava insistentemente na linha que nos correspondia, o voo miraculosamente atrasado. “Corram, meninos, depressa, depressa! Dá cá a mão, não fiques para trás!” Apressados, ofegantes, encontrões a quem não se desviava. Chegamos esbaforidos a uma sala de embarque vazia. Uma senhora sorriu para nós: “Foi por pouco, o comandante decidiu que não pode esperar mais. Têm os vossos cartões de embarque?” Atrás de nós desaguou um casal mais velho, de rostos vermelhos e suados, também ainda a tempo de entrar. Depois o portão fechou e seguimos viagem num avião meio vazio. Desfecho venturoso!

E talvez no ano anterior acontecera-nos outra trapalhada. O caminho até ao aeroporto já o sabemos de memória, distâncias e durações de percursos incluídos, o que faz com que volta não volta cometamos a imprudência de entrar no carro e marchar com tempo relativamente à justa. Durante essas férias de verão em solo pátrio algo inesperado impôs como necessário um curto regresso a S. Miguel, onde estivéramos três semanas antes. Só um de nós ia viajar, sem bagagem nem outros fardos que não os emocionais. Nem seria necessário estacionar, era abrir a porta e sair, junto ao Terminal 2, bilhete eletrónico impresso e na mão, comprado on-line no dia anterior a uma dessas companhias de baixo custo que nunca atrasam mais do que cinco minutos e não têm tolerância para quem não cumpre as regras. Mas, apesar de ser um dia quente de agosto, àquela hora de início de tarde em que as estradas estão meio desertas, havia engarrafamento na segunda circular. Já bem depois do final da A1, passada a ponte do Trancão, ali no local onde há um radar e umas bombas de gasolina, andava-se a passo de caracol. Transpirávamos de calor e de ansiedade, quase se chegava mais rápido a pé, isto é só entrar e correr que no Terminal 2 é tudo tão perto (na altura era tudo no mesmo piso, ainda não havia a voltinha atual pela cave), se seguir assim ainda dá tempo. E pumba! Mesmo à vista da saída para a direita que leva ao aeroporto, o barulho inconfundível de chapa batida e o automóvel a dar um solavanco para a frente que não dependera da minha vontade. Saímos do veículo de cabeça perdida, nem sei se pusemos colete se não, mas agarrámos a “Declaração Amigável de Acidente Automóvel” antes de abrir a porta. Eu já trazia a carta de condução na mão enquanto ligava a câmara do telemóvel com a outra mão. Um homem bem vestido e com ar desnorteado (que certamente não se devia apenas ao incidente de trânsito que acabara de causar) saiu de um carro várias vezes mais valioso que o nosso e começou educadamente a balbuciar desculpas e explicações. Avaliei rapidamente os estragos. Ia precisar de um para-choques novo, que estes materiais de plástico são uma gaita, não se podem reparar sem substituir. Mas não era nada que se visse ao longe e, mais importante, de todo não afetava o funcionamento da viatura. Tirei duas ou três fotos, matrículas visíveis, enquanto o fulano papagueava. Telemóvel de volta ao bolso de trás das calças de ganga. Calma e lentamente fitei o sujeito e falei, em voz baixa e articulando bem cada palavra, para não ter que me repetir. “Lamento, mas não queremos saber. O senhor está bem, nós estamos bem, o seu seguro vai resolver a resto. Devíamos estar no Terminal 2 do aeroporto há quatro minutos. Portanto vamos os dois preencher depressa esta coisa” e acenei com a declaração, “que nós queremos sair daqui para fora. Agora.” Nunca um papelinho com tanto quadradinho se preencheu tão depressa. Acenámos em agradecimento. Houve uma aberta momentânea no trânsito e pirámo-nos. Travei em frente à porta de vidro automática com o mínimo de agressividade que consegui e ainda gritei que esperava 5 minutos ali à frente, mas a informação perdeu-se no ar. Um carro de polícia em patrulhamento regular apareceu após um par de minutos e mandou-me seguir, a mim e outro também ali estava. Decidi não me afastar muito, fui dar a volta ao Terminal 1, mas por fim uma bendita SMS “Já estou no avião, não posso telefonar, apanhei o fim do embarque, vou desligar o telefone.” Finalmente respirei fundo. Afortunadamente, por vezes até as low-cost atrasam 10 minutos!


Mas voltemos à manhã de 30 Dezembro de há uns anos, a tal limpa de peripécias. Nesse dia não acontecera até então absolutamente nada digno de nota ou fora do esperado. Bagagem despachada, documentos em ordem. Mesmo nos placards eletrónicos do aeroporto a hora de partida do voo mantinha-se inalterada, On Time”, daí a cerca de uma hora. Tudo a correr bem.

Eis senão quando o meu nome soa pelos altifalantes. “Sra. Fulana de Tal, é favor dirigir-se ao seu portão de embarque com urgência. Sra. Fulana de Tal, dirija-se ao seu portão de embarque com urgência.” Sim, a Fulana de Tal sou eu, sou mesmo eu. A combinação de nome com sobrenome invulgares faz com que eu seja a única e inconfundível Fulana de Tal. Não há espaço para dúvidas. Posto isto, estuguei o passo quase esboçando uma corrida, o Sr. Fulano Sicrano despachando-se a meu lado ele que, viajando ao mesmo tempo que eu, não tinha curiosamente sido chamado com aparato! Não sabia se me sentir inquieta ou espantada mas o tempo para auto-interrogação foi curto. Ao comparecer na sala de embarque constatámos que não se passava rigorosamente nada. Tinha o aspeto de qualquer sala de embarque quando falta uma hora para o voo partir. Passageiros que vão chegando sem pressa, bagagem a ocupar cadeiras, casais que olham enfadados para os telemóveis com refeições de aspeto gorduroso meio comidas pousadas nos joelhos, algum solitário agarrado a um livro, um par de suecos com tantas garrafas de bom álcool quantas as Duty Free lhes permitem trazer (nós também nos costumamos abastecer...), um cabeludo de auscultadores, algum grupo de adolescentes encantado por ir viajar e dois trabalhadores atrás do balcão, por vezes ao telefone, outras vezes parecendo desocupados. Cada vez mais intrigada aproximei-se. “Bom dia, sou a Sra. Fulana de Tal. Chamaram-me ao altifalante?” Sisuda e fechada, a funcionária da companhia aérea explicou-me: “Temos um problema sério. Detetámos conteúdo irregular na sua bagagem.” Franzi o sobrolho sem perceber à primeira. “Leva itens proibidos! Quem preparou a sua bagagem, foi a senhora?” Anui e sentindo-me um pouco tola comecei a explicar “Bom, tenho umas garrafas de vinho. E um queijo grande, mas já levei queijo muitas vezes e não houve problema. Há também umas farinheiras e dois pacotes de Nestum e um de açúcar amarelo. Tirando isso tenho roupa e sapatos...” A senhora olhou-me agora como se eu fosse meio lerda. “Não, não creio que me esteja a acompanhar. A questão é que foram detetados itens proibidos!” “Mas que tipo de coisas, então?!” Com alguma hostilidade e brusquidão o funcionário do lado, que até aquele momento aparentava desinteresse pelo diálogo, respondeu por ela. “A senhora é que sabe o que lá meteu!” Inocentemente, o Sr. Fulano Sicrano, calado todo o tempo, indagou “E na minha, não há nada de errado? As nossas coisas estão misturadas.” Verificaram a identidade dele. “Não, Sr. Fulano, não tem nenhuma mala registada em seu nome, há duas em nome da Sra. Fulana.” E continuou, para mim: “Vou de imediato chamar um colega que a irá conduzir a uma zona segura do aeroporto onde está a sua mala retida e vigiada até que possa explicar o que se passa de forma convincente. Não garantimos que volte a tempo de seguir neste voo.” Comecei a ficar preocupada. Ia trabalhar no dia seguinte, ficar ali não era opção. “Vamos lá então os dois ver isso”, dissemos. “Não, irá apenas a Sra. Fulana. O Sr. Fulano terá que aguardar aqui”. Entreolhamo-nos perplexos. “Eu espero por ti”, disse ele, dando-me as chaves dos cadeados das malas.

Quase sem demora apareceu um sujeito de colete amarelo, vestido com roupa de outra das empresas que mantêm o aeroporto a funcionar. Segui com ele pelo corredor que daria acesso ao avião. “A sua bagagem está um bocado longe, vamos ali no veículo.” Abriu uma porta, descemos umas escadas exteriores e apontou-me o lugar do passageiro numa daquelas viaturas que parecem os carrinhos usados nos campos de golfe. De consciência tranquila mas sentindo a necessidade de me justificar balbuciei que não sabia o que poderia ser o item proibido. O homem encolheu os ombros. “Isto está sempre a acontecer. Quando lá chegar logo vê qual é o problema. Eu vou tentar ir depressa para ver a senhora ainda volta para aqui a tempo, se não é uma chatice para si!”, acrescentou com simpatia. Ligeiramente mais sossegada recostei-me, coloquei o cinto de segurança e entretive-me a ver as vistas. A viagem não foi curta. Começou lenta, na zona dos túneis (ou serão semi subterrâneos, talvez) onde constantes autocarros apanham ou largam passageiros cujos aviões se encontram estacionados lá mais longe. Continuou condicionada por pequenos engarrafamentos causados por aeronaves em manobras. Passaram alguns minutos até o senhor de colete poder acelerar para uma área mais arejada e o carrito mostrar que afinal conseguia andar depressa. Abrandamos junto àquilo que me pareceu um monumental armazém, sem portas nem portões, apenas várias aberturas altas e largas, escancaradas. Cruzamos um desses pórticos e, logo desde a entrada, uma brutalidade de tapetes rolantes, uns cá em baixo, outros a grande altura, alguns em diagonal, em vários andares por vezes sobrepostos, por onde deslizavam lentamente milhares de malas de viagem. Vinham de todas as direções. Peças de bagagem grandes, médias, pequenas, algumas brilhantes e coloridas, a maioria porém despojada de detalhes que as tornasse apelativas. Para mim era um inesperado e fascinante espetáculo, parecia que com seis dias de atraso tinha caído na linha de distribuição de uma fábrica de brinquedos do Polo Norte, como aquelas que se vêm nos filmes de animação, onde os duendes têm que dar conta de milhares e milhares de presentes para milhares e milhares de crianças o mais rapidamente possível enquanto o Pai Natal aguarda com as renas, bonacheirão e sorridente, pronto para a sua grande noite. Mas, em contraste, os que ali laboravam na apanha e transferência de volumes (antes que estes fossem cuspidos para o chão pelas máquinas incansáveis) não exibiam sorrisos largos nem assobiavam, imensamente satisfeitos com a sua tarefa. Apenas a cumpriam, desinteressados. Cheiravam a monotonia.

Equivoquei-me ao pensar que era ali o nosso destino. O périplo continuou por dentro do armazém, ou sucessão de edifícios, talvez, dado o tamanho, enquanto eu me interrogava como era afinal possível que na grande maioria das vezes a bagagem de cada um seguisse efetivamente para o porão que lhe era devido. Sem nos determos, transitamos para uma secção muito mais distante, na obscuridade, onde os infindáveis carris, tão numerosos como os anteriores, estavam agora vazios e parados. Desta vez, se me dissessem que estava num estranho parque de diversões abandonado cuja atração principal era uma labiríntica e complexa montanha-russa (onde eu não andaria nem que me pagassem) eu acreditaria, assim me parecia a gigantesca estrutura metálica. Desassossegada já eu estava, comecei a ficar desconcertada. Mas após uma ultima curva, o carrito travou e parou. E lá estava ela, a minha mala. Na verdade um enorme saco de viagem rosa-choque, com rodinhas numa ponta e uma pega extensível na outra extremidade. Cuidadosamente poisado em cima de uma pequena plataforma, que mais parecia um pódio. Solitário e pequenino naquele espaço imenso. Não, solitário não. De pé, ao lado do saco, a guardá-lo atentamente, um corpulento segurança.

Saí do carro sem saber bem o que fazer e dei alguns passos hesitantes, que ecoavam no enorme espaço, em direção ao segurança, que me cumprimentou com um aceno de cabeça. Ele e o homem de colete amarelo não tinham perdido tempo e depois de um descontraído “Então pá, aqui outra vez?” encetavam já uma discussão sobre um qualquer reforço futebolístico para um dos grandes. Após duas frases o meu motorista recuou, “Deixa isso para depois, a senhora tem pressa”. O segurança voltou-se de novo para mim. “Pois é, a sua mala acusou ali qualquer coisa que não devia, é qualquer coisa de tamanho pequeno. Abra-a lá, se faz favor, para resolvermos isto.” E sem me deixar falar continuou “Pela sua cara já estou a ver que vem às escuras. Pense lá bem, um
isqueiro ou aquelas velinhas de festa que toda a gente acha muito engraçadas e que deitam umas faíscas quando ardem... Isto, as pessoas fazem as malas e nem sempre sabem que há coisas que parece que não têm mal nenhum que não podem lá meter.” Na mouche! O homem, certamente experiente em idiotices, acertara na mouche!

                              

Raios partam os tomteblossa, nem sei o nome daquilo em português! Não são propriamente velas de aniversário, são uns objetos mais compridos e finos, como zaragatoas, uns pauzinhos com um revestimento pirotécnico ligeiro. Quando se lhes pega fogo ardem em 20 segundos, formando uma pequena mas brilhante estrela de luz de onde saltam inofensivas faíscas que não sobrevivem a mais de dez centímetros da sua origem. São coisas que se podem espetar num bolo para dar um efeito visual engraçado ou que até as crianças podem segurar na mão na Passagem de Ano por ser divertido, sem risco de se queimaram. Pois esses tais tomteblossa, que se vendem em qualquer supermercado sueco, em caixinhas de vinte, na altura do Natal, tinham sido precisamente comprados num desses estabelecimentos, em Skövde, onde resido. Atirei-os para a mala sem pensar no caso (e conclui-se que em Oslo também ninguém ligou ao assunto) e, chegada a Portugal, nunca mais olhei para eles. Ao fazer as malas no dia anterior achei, porém, que era pena desperdiça-los, com o Ano Novo ali tão próximo. De modos que, pimba, lá voltaram eles inocentemente para dentro da mala. O pessoal de terra em Lisboa, efetivamente cuidadoso, não quis arriscar a que o dono da mala fosse um potencial terrorista e vá de me proporcionar uma experiência singular. Sabendo agora o que tinha que procurar, foi só abrir a mala e estender a mão ao local correto. Mostrei o pacotinho de “varinhas mágicas” ao segurança, que quase sem olhar as atirou para um recipiente adjacente, riu-se e observou “Ora bem, está a ver? Não perde muito, deixe lá. Para a próxima já sabe... “ E falando mais para o outro que para mim prosseguiu “Já despachei todas as malas que aqui tinha, pelo caminho deixo esta com a malta que a vai levar ao avião, pode ser que ainda chegue a tempo.” Eu e o senhor do colete amarelo regressamos, o carrito fazendo o trajeto original em sentido inverso, eu ainda pasma com a situação. Levou-me de volta pelas mesmas escadas, a mesma porta, o mesmo corredor, vindo eu assim desembocar atrás do balcão onde os funcionários se afadigavam agora para iniciar o embarque. Alguns passageiros olharam-me com curiosidade. A sala de espera a abarrotar, duas longas filas que se estendiam até aos corredores. Lá, mais longe, Fulano Sicrano estava sentado e esperava por mim. “Então, o que foi, era engano?” Fiz-lhe um relato rápido, criando algum suspense para o desfecho, enquanto mostrávamos os passaportes e seguíamos para o avião. Ainda nos vínhamos a rir quando me sentei no meu lugar, junto a uma da janela. Por coincidência, exatamente acima do local onde a bagagem entrava no porão. Quando parecia que todas as malas estavam no sítio, chegou ainda um carrinho com mais dois volumes. Um deles era o meu saco! Mesmo a tempo. Seguimos viagem sem peripécias, mas com uma boa história para contar.

1 comentário: