(2 a 8 de janeiro)
A primeira vez que calcei mesmo uns patins tinha 35 anos. Não sei se alguma vez terei experimentado na calçada junto à praia os ultrapassados patins de quatro rodinhas do meu irmão, comprados em Espanha há muitos anos. E houve, num Natal relativamente recente, uma pista de gelo na praça da cidade onde morávamos, lá em terras lusas. A minha filha, então um pingo de gente, quis experimentar e eu fui com ela para a ajudar. Era essa toda a minha inexperiência.
Estávamos na Suécia havia umas três semanas quando fomos abordados no supermercado por uma mulher mais baixa que eu, sorriso aberto, cabelo castanho claro aos cachos fechados, cheia de energia, que debitava um espanhol rápido mas fácil de entender e falava sem cessar. A minha clássica reação bicho-do-mato de quando sou apanhada de surpresa, “esconde-te e foge antes que piore”, nem teve tempo de se mostrar. A minha filha bichanou-me tão discretamente quanto os seus seis anos lho permitiram “É a menina da minha escola que fala espanhol e a mãe dela que te queria conhecer. Acho que elas não sabem sueco.” Consegui transformar o monólogo num diálogo que se foi prolongando, o meu filho tinha o nome do pai dela (exceto, claro, o detalhe do ç e do z), ela também era médica (apesar de trabalhar numa especialidade onde quase tudo se faz sem contacto direto com o paciente), tinham chegado à Suécia um par de semanas antes de nós e tínhamos vários outros pontos comuns que permitiam que a conversa fluísse agradável. Fomos a uma loja de hambúrgueres beber um café e acabei por lhes dar boleia para casa, mais aos seus cinco sacos de compras, quando percebi que iam esperar pelo autocarro.
Com uma certa inocência, eu pensava que todos os suecos nasciam de patins nos pés e sentia, não sem uma ponta de apreensão, que os meus filhos já iam tarde. Assim, quando a Olívia me disse que na semana seguinte começariam aulas de patinagem para crianças fiquei deveras interessada. A Olívia, nascida e crescida em Buenos Aires, tinha experimentado patinagem no gelo nos invernos frios da sua infância. Já a Paola, mexicana de passaporte, jardim de infância na Catalunha, apenas patinara um par de vezes nos dois anos que residira em Madrid, antes de se mudar com a mãe para a Suécia. Consideravelmente mais entendidas no assunto do que nós!
E os patins, custam alguns 50 euros, não? Seja lá isso o que for em coroas... Falou-me das lojas second hand, neste país uma verdadeira instituição, onde tudo se compra por tuta e meia. Era a segunda pessoa na mesma semana que me pintava esses estabelecimentos como a solução rápida, barata e eficaz para os meus problemas consumistas. Há de tudo, a bom preço e geralmente em muito bom estado. Não há é nenhum stock permanente, tem que se ir passando e espreitando. Uns dias mais tarde fomos as quatro a um desses locais de venda, já que a Paola também precisava de patins. Não havia do tamanho das miúdas, mas havia uns que me pareciam servir a mim e outros à Olívia. Por brincadeira experimentei-os e num impulso decidi comprá-los. Afinal por 59 coroas, menos de 6 euros, não ia arruinar o orçamento. A minha filha, de mãos vazias, ficou tristonha pelo que no sábado imediato prosseguimos a busca noutra second hand onde fomos bem sucedidas. Ainda mais baratos que os meus. Levei também uns minúsculos para o meu rapazinho e para os seus pés de dois aninhos. Já agora, fiquei de olho numa bicicleta, roda 26, três mudanças, aspeto usado mas a funcionar perfeitamente, preço convidativo. Passado uma semana ainda lá estava, comprei-a eu.
Nesse domingo e em muitos outros passamos a encontrar-nos com a Olívia e a Paola na pista pequena do pavilhão do gelo da cidade. Sem nada melhor para fazer, num país de noites precoces e clima desalegre, praticava agarrada ao gradeamento lateral até me aventurar a soltar, enquanto as meninas já andavam por ali sem medo, tão desenrascadas como todas as da mesma idade. De vez em quando aparecia uma miúda mais velha a fazer saltos, piruetas bonitas e outras habilidades, com uma mãe atrás a sacar registos para a posteridade. E elas olhavam. E nós também, desde que protegidas pelo corrimão, que isto de ver a mestria dos outros é bonito, mas cair com o rabo no gelo duro e frio não tem graça!
Esses meus primeiros patins duraram-me seis anos. Na verdade ainda os tenho, guardados na arrecadação. Este ano decidi gastar os tais 50 euros nuns de boa marca e boa qualidade, comprados ainda assim em segunda mão, num grupo de patinagem artística no Facebook. Os da minha filha, claro, duraram apenas até o pé crescer. Depois teve outros semelhantes. E a seguir mais unas. Posteriormente comprei-lhe um par de Edea em segunda mão, granditos para durarem, que na altura achei ridiculamente dispendiosos, no tal grupo do Facebook. Passado ano e meio, o pé maior mas a mesma estratégia, a mesma marca, já um pouco mais caros. E este verão recebeu pela primeira vez um par de patins novinhos em folha, com direito a hora marcada e atendimento personalizado numa loja escondida, a duas horas daqui. Uns Ice Fly com lâmina Pattern 99. Lindos. Custaram uma obscenidade.
A bicicleta também ainda a tenho. Ao fim de dois anos comprei outra no Blocket (o OLX cá do sitio), roda 28, sete mudanças, robusta e sempre pronta para me apoiar. Mas como a primeira era de facto boa decidi mantê-la como reserva, apesar de saber que mesmo após estes anos todos não teria dificuldade em vendê-la por mais do preço que mês custou.
As aulas de patinagem da miúda, no nível “Escolinha de Patins”, correram bem. Uma vez por semana, até ao fim da primavera, ela aprendeu a andar para a frente, para trás, a travar, a equilibrar-se num só pé. Lá para inicio de outubro do ano seguinte, ainda sem o esquema sueco entranhado nas ideias, perguntei a uma colega cuja filha também patinava quando começavam as aulas. Olhou-me com um certo desdém. “Na terceira semana de agosto, ao mesmo tempo que a escola”. Ops, bolas! Ainda foi a tempo de seguir na “Escolinha de Patinagem Artística”, duas vezes por semana. No inicio gostava imenso e evoluía bem. Mas aos 7 anos não tinha nenhuma amizade estável no mesmo nível, apenas conhecia de vista duas meninas. A treinadora nem sempre era afável, por vezes era francamente desagradável e eu hesitava entre mantê-la na patinagem ou iniciar outra atividade. No ano seguinte foi ela própria que se recusou a continuar. Tinha medo que gritassem com ela. Teve aulas de dança e não sei bem porquê insisti que paralelamente experimentasse bandy, a tal espécie de hóquei em patins, que se treinava na enorme pista do monte, ao ar livre, aos sábados de manhã. Tinham grupos de todos os níveis e ela patinava bem, pelo que se integrou sem dificuldade. Deslizava em velocidade, ninguém a chateava quando se distraía e era de facto elogiada pelos treinadores. Readquiriu o gosto pela patinagem.
O meu rapazinho então com 4 anos e meio e a treinar às mesma horas, aprendeu finalmente a equilibrar-se sem receio em cima dos patins. Mas na verdade só gostava da parte em que andava de taco na mão. Às vezes, quando estava na altura de praticar outras coisas, jogava à apanhada com um dos outros pequenitos, até alguém os ir buscar. Ocasionalmente permanecíamos na pista mais um pouco depois da aula. Ou voltávamos da parte da tarde, pois há uns holofotes potentes a quebrar a escuridão, que vistos da cidade dão uma aura cintilante a todo o cimo do monte. Eu calçava também os meus patins, já me aventurava com cuidado sem necessidade de corrimões desde que não houvesse muita gente. E ali quase nunca havia ninguém. É tão agradável patinar ao ar livre naquele espaço enorme, o vento frio na face, os pinheiros com gelo, por vezes a nevar levemente. No ano seguinte o meu rapazinho seguiu com o bandy de forma inconstante e aprendeu finalmente a patinar como deve ser. Depois fartou-se daquilo durante uns tempos, até voltar a meio do ano passado. Entusiasmou-se a sério com os treinos de jogo e este ano comparece duas vezes por semana e gosta.
Fika. Fika é uma das palavras favoritas dos suecos e que eles creem que de certa forma os define. Traduz-se por lanchinho prolongado com café, bolos ou bolachas e muita conversa à mistura... no trabalho também há fika varias vezes por dia, são é mais curtos. Embora agora não tenha a ver com o assunto, outra palavra que os suecos adoram e também os define é lagom. Geralmente traduz-se por algo que não é demais nem de menos, por algo que está bem, adequado. O aquecimento do carro está quente de mais? Não, está lagom. Costumas ter muitos trabalhos de casa? Não, é lagom. O volume de trabalho é excessivo? Nej, det är faktiskt ganska lagom! Não, de facto é bastante adequado.
No início do nosso quarto ano na Suécia fomos fazer um fika a casa da Paulina, a colega de trabalho com quem partilho o gabinete na pediatria, que se tornou amiga e que não é, obviamente, sueca. Originária de um país báltico é um doce de pessoa, paciente e resignada e tem características físicas que permitem que seja facilmente confundida com as locais. Ou com italiana, já que substituiu o sobrenome do pai pelo do marido. Já a mim, pelo nome e pela cara, aquilo com que posso ser confundida é com síria ou libanesa e não é raro que se dirijam a mim em árabe. A Paulina tinha na altura 3 filhos (agora há mais um) sendo os dois mais novos, o Alfonso e a Claudia, da idade dos meus. Quando a minha filha soube que a Claudia tinha começado na patinagem artística quis voltar. Hesitei, mas ela estava firme.
O recomeço não foi brando. Gostava das aulas e das meninas. Mas a treinadora, uma competente patinadora de 20 e tal anos, era mal-humorada, indelicada até com os pais, por vezes até verbalmente agressiva com as miúdas. Discuti o assunto várias vezes com a Paulina, mas a meninas, mesmo nos dias em que se notavam insatisfeitas e contrariadas, queriam continuar. Evoluíram satisfatoriamente e nesse inverno, por decisão do clube, chegou a altura de começarem a ser testadas.
Não recordo todos os detalhes mas a minha filha estava entusiasmada com a ideia de fazer o seu primeiro teste e demonstrar que progredia na aprendizagem. Não foi aqui na cidade, foi em Tibro, uma localidade mais pequena a escassa meia hora de carro, mas de onde saíram patinadoras medalhadas internacionalmente e de nível olímpico. Chegamos folgadas de tempo, descontraídas. Fomos procurar a treinadora responsável pelas desportistas de Skövde, nunca a tinha visto antes e a minha filha hesitou antes de decidir que a conhecia talvez de um treino, uma vez apenas. Demonstrando uma incapacidade extrema de lidar com crianças e com estados de ansiedade ligeiros, gritou com a minha filha até a fazer chorar, enquanto ela aquecia no gelo. Disse-lhe que ela não sabia colocar o pés, os braços, sei lá. Quando a miúda estava em pânico virou-se para mim e disse que não parecia boa ideia ela ser testada já que não estava em condições, que não compreendia sequer por que era que eu a tinha trazido. A minha filha, lavada em lágrimas, queria ir para casa. Eu já estava a ferver mas nesse momento subiram-me ao nariz todos os temperos de povos de sangue quente e perdi completamente a minha mal imitada compostura escandinava. No meu sueco imperfeito (que ela não teve dificuldades em perceber) disse-lhe tudo o que achava dela e do seu comportamento para com as miúdas, da sua arrogância, falta de empatia. Ela foi tomada de surpresa, aqui não se questiona nada. Fui desagradável e ela também. Levantei a voz de fúria, algo culturalmente tão inexistente que a confundiu. Mas a gota de água foi inesperada. Quando eu lhe disse que ainda por cima não a conhecia de lado nenhum, achei que ela ia ter um piripaque a sério. Contestar o meu trabalho, está bem, mas contestar o meu ego, como se atreve? “Sou a treinadora principal do clube!” Ah, o mau exemplo vem de cima, pensei. Esforcei-me por condenar a agressividade dela para com as iniciantes da modalidade, mas caiu em saco roto. A discussão terminou sem água na fervura nem acenos amigáveis. Eu achei que não valia a pena prosseguir e ela tinha mais que fazer. Depois de sossegada com beijinhos e palavras tranquilizadoras, a minha filha entrou no gelo e fez o que tinha a fazer, sem brilho nem energia. Mais abraços de mamã à saída, não faz mal, daqui a dois meses há mais e tentas outra vez. Sim, porque para ela, desistir da patinagem estava fora de questão.
Nessa altura discuti o sucedido não só com a Paulina, mas também com a colega holandesa que me olhara desconcertada uns meses antes por eu não ter os calendários memorizados (agora continuo a não sabe-los de cor, mas o iPhone sabe e avisa-me). A filha dela era mais velha, muito boa patinadora, talentosa e esforçada. Ou seja, a minha colega era uma experiente mãe de jovem patinadora e eu, embora esperasse de certo modo ser criticada por ela, esperava simultaneamente ajuda para criar alguma ferramenta que no futuro me permitisse lidar melhor com tais situações. Inesperadamente, a holandesa cumpridora de regras, confessa apreciadora e entendedora dos códigos sociais suecos não escritos, olhou para mim e suspirou. “Pois, reparei que te zangaste a sério. É muito frustrante ver o modo como as treinadoras tratam as miúdas. São exímias com o reforço negativo, raramente elogiam. Torna-se desmotivante... Já tive várias conversas sobre isso com a direção mas respondem-me sempre que só treina quem quer, quem não gosta assim que se inscreva noutra atividade...” Encolheu os ombros. “É uma pena. Não concordo, mas não há volta a dar. Ou aceitamos as regras, ou saímos.” Fiquei sem saber o que fazer ou dizer. Nada daquilo encaixava no brando padrão sueco, tudo lagom e pleno de uma afabilidade superficial mas asséptica, que esta sociedade tanto se esforça por manter, mostrar e apregoar. Nem aquele desabafo se enquadrava na maneira de ser, despachada, resolvida e integrada da minha colega. Porém a miúda queria continuar a patinar e eu, sentindo-me de mãos atadas, decidi esperar ate ao final da época, escassos dois meses, adiando qualquer decisão.
Afinal não foi assim. Passadas curtas semanas tanto a minha filha como a Claudia saíram a chorar do treino para o balneário. Nenhuma delas queria dar parte de fraca, pelo que a minha filha apenas me contou o que se tinha passado com a Claudia, que por sua vez apenas relatou à sua mãe o que acontecera com a minha filha. Quando a Paulina e eu conversamos no dia a seguir e montamos as peças do puzzle, eu achei que era demais. Num e-mail breve e limpo pedi uma reunião com a direção, queria perceber o que se passava. Compareci à hora marcada. Duas mulheres de rosto fechado aguardavam-me numa sala escura e fria. Não houve educada oferta de café, sinal suficiente de perigo e desconformidade. Disseram que se sentasse e principiaram por criticar alternadamente o meu comportamento no dia dos testes, “Intolerável!”, diziam. Não me deixar falar era o objetivo claro. Interrompi-as sem suavidade e perguntei se me iam dar oportunidade de explicar o motivo de ter pedido a reunião e expressar o meu ponto de vista. Que não, que eu não queria esclarecer nada, que só queria refilar. Ali quem falava eram elas. “Com certeza”, afirmei eu, levantando-me em direção à porta, “vão é então falar sozinhas, não contem comigo para o vosso monólogo”. Mais uma vez li o pasmo nos seus olhos, uma mãe sueca não se comportaria assim. O certo é que se calaram de espanto e com ironia azeda me disseram “Refila lá então o que quiseres”. Após dez minutos de coerente e seguro discurso solitário foi possível evoluir para em diálogo com as minhas interlocutoras. Uma das delas era inflexível, de uma frieza brutal. Chegou a afirmar que a sua própria filha gostava que gritassem com ela e que a rebaixassem pois assim evoluía mais depressa. Com algum sarcasmo expliquei que a minha filha preferia evoluir devagar. A outra mulher amenizou um pouco a postura e a conversa pode decorrer com a tranquilidade e cordialidade possível, depois do desastre que se desenhara inicialmente. Ao fim de uma hora percebi que estávamos em modo “pescadinha-de-rabo-na-boca” pelo que agradeci com cortesia e rematei com um sorriso e o clássico “Concordamos em que discordamos”. A empedernida disse adeus, a amolecida anuiu e devolveu-me o sorriso. Saí de lá esgotada. Por um lado tinha-me conseguido expressar, por outro lado constatei que nitidamente isso não me tinha servido de nada. Nem naquele dia, nem para futuro. O suspiro e o encolher de ombros da colega holandesa colaram-se a mim.
Disse, redisse e voltei a dizer à minha filha que só treinava se quisesse. Que ela patinava bem. Não obstante que era normal a evolução ser hesitante, por vezes lenta. Que podia acontecer que a pessoa se sentisse insegura, exasperada, mesmo. Que as treinadoras estavam erradas na forma como se relacionavam com elas. Mas que isso era algo que eu não podia modificar e que não se ia alterar. O olhar de aceitação da minha filha tinha o aspeto de um suspiro e de um encolher de ombros holandês. Ainda assim, a decisão de prosseguir era manifesta.
O verão chegou e fugiu e na época seguinte as meninas continuaram com energia e alegria. Criaram as suas rotinas, muitas vezes em conjunto. Passaram por testes e provas, por vezes bem sucedidas, por vezes apenas para ganhar resiliência. A treinadora principal entrou numa longa licença de maternidade da qual nunca regressou e a sua colega desagradável mudou de emprego e deixou de ter disponibilidade para treinar. Não nos deixaram saudades. Já a filha da holandesa, um pouco mais velha e de mais firme memória, continuava a adorar as aulas e os treinos mas recusou voltar a ser testada ou a entrar em competições. “Foi julgada demasiadas vezes, de forma desnecessariamente dura”, justificou a mãe. Desfecho lamentável. Não mudou de ideias nem aquando do surgimento de uma nova treinadora principal, experiente mas racional nas exigências, firme mas calorosa. O estilo da nova responsável técnica estendeu-se horizontalmente à direção e verticalmente às outras treinadoras, adoçando algumas que eram pouco mais que um palminho de pés habilidosos, arrogantes e mimadas.
As miúdas respiravam patinagem e a Paulina e eu, paralelamente à sua evolução, começamos a ter que ser mais participativas nas atividades do clube.
Na Suécia, o custo de atividades desportivas para crianças e jovens é em geral baixo, sendo a patinagem artística a escusada exceção. Sai caro ter uma filha na patinagem. Tirando os dois primeiros anos, em que o valor total da temporada era o mesmo que uma viagem de ida e volta pela A1 do Entroncamento a Lisboa, em que os patins não eram de marca italiana e em que elas treinavam com qualquer roupita confortável. Este ano o valor da temporada foi mais alto que o ordenado mínimo português, já considerando os valores de 2021. Pelo preço dos patins, como já referi, poderia comprar bilhetes de avião de ida e volta para Lisboa para toda a família (considerando preços pré-pandemia, não aos preços atuais). E como se não bastasse, todas as provas, testes, pré-épocas, pós-épocas, treinos especiais de Natal, de Páscoa e do raio que os parta são pagos à parte. Um vestido sem brilho nem glamour custa mais de 50 euros, comprado on-line numa dessas loja de desporto que existem em toda a Europa, um que seja bonitinho vai para o dobro num piscar de olhos e um que seja airoso e elegante, apelativo tanto para as mães como para as miúdas... não, não vai acontecer! Eu e a Paulina torna-mo-nos peritas em encontrar roupa própria da modalidade, usada mas de boa qualidade, nos grupos do Facebook e afins. Eu tive também os meus momentos Aliexpress onde indumentárias de nível “bonitinhas” custam dez vezes menos que os seus equivalentes de boa qualidade. Mas, vamos lá a ver, são vistosos ao perto e ao longe e à velocidade que as miúdas crescem, mal reparamos nos detalhes antes de ser hora de os revender. Cumprem o seu propósito.
A contrapartida do baixo preço das atividades desportivas é os pais terem que ser participativos de diversas formas.
No inicio, eram as bolachas. É um clássico nórdico, a venda por catálogo de caixas de bolachinhas diversas e de knäckbröd com sementes ou especiarias (variedade de pão sueco, delgado, crocante e seco muito popular em qualquer altura do dia, inevitável num fika). Os miúdos, de revista em punho, vendem à família, amigos, vizinhos e colegas de trabalho dos pais. Todos os produtos do catalogo custam o mesmo, não tem nada que enganar, é só decidir quantas embalagens se quer. Ao fim de 15 dias um responsável do clube faz a encomenda conjunta, os pais recolhem a sua parte e ajudam os filhos a distribuir a quem comprou, a receber o pagamento e a transferir o montante em causa para o clube. Este arrecada uma parte significativa do produto das venda das bolachas e toda a gente fica contente. Temos que vender dez embalagens de bolachas duas ou três vezes por ano. Geralmente para a patinagem são duas, só que já aconteceu outra atividade qualquer adotar o mesmíssimo catálogo com umas semanas de diferença e ter que se dar despacho a tudo. Mas as bolachas não me incomodam muito porque apesar de serem ligeiramente mais caras que as suas congéneres de supermercado, são bolachas. Ou seja, é uma coisa relativamente barata e que se consome, não fica em casa a ocupar espaço nem a ganhar pó.
Mas depois veio a roupa interior. Por catálogo. As pessoas estão habituadas e compram. Já sabem como funciona, a marca é sempre a mesma e a relação qualidade preço é de facto satisfatória. Mas, vamos lá a ver, o custo de um conjunto de 7 pares de meias ou de 5 cuecas de senhora ou de 3 boxers de homem é naturalmente diferente do de um pacote de bolachas. E se eu vendo 7 pares de meias ao vizinho da casa azul no outono, ele não vai precisar de as comprar outra vez na primavera. E a Claudia também vende. E os miúdos ali da casa castanha andam pela rua com o mesmo catálogo na mão, para apoiar o clube de andebol. E a filha da enfermeira da consulta, que está no ultimo ano do liceu, adiantou-se na angariação de fundos para a viagem de finalistas e já toda a gente comprou roupa interior lá no serviço. Ou seja, vender dez pacotes de roupa interior duas vezes por ano já não é tão fácil. Mesmo “evitando” compras não urgentes nas lojas clássicas, usando as mesmas meias puídas até estar na hora do próximo round de vendas para maximizar o consumo interno, o catálogo de roupa interior enerva-me sempre um bocadinho.
Houve uma vez que andei a vender especiarias. O mesmo princípio, catálogos apelativos, onde tudo custa o mesmo. Esse não foi para a patinagem, foi para a escola, já nem sei para quê. Os frascos eram enormes e bem fornecidos, mas após 2 anos ainda ali tenho especiarias para dar e vender, ninguém gasta aquilo tudo! Na mesma altura andava uma secretária da pediatria a vender salami de receita italiana mas fabricado com carne de caça sueca, chouriços de mais um quilo, para angariar fundos para o clube de innebandy do filho (uma espécie de hóquei em salão mas sem patins, a correr). Essa dos enchidos acho que não pegou. No AIK, o clube de futebol do meu filho, lembraram-se de nos dizer que vendessemos gel de banho e sabonetes! Ah, mas desta vez deram-me a possibilidade de pagar uma “multa” que compensasse a perda do lucro por não ter vendido as oito unidades frascos em causa. É que nem fui buscar o catalogo, transferi o dinheiro e não pensei mais nisso! Mas passados uns meses, as mesmas almas iluminadas do AIK reluziram para o papel higiénico. Sim, papel higiénico. Em pacotes de 40 rolos, cerca de 50% mais caro que a mesma marca no supermercado. Tínhamos uma semana para vender 8 pacotes, creio. Foi no dia seguintes a aterrarmos em Lisboa que recebi o e-mail a informar-me dessa incumbência, desta vez sem a possibilidade de “paga a multa se não queres vender”. Mas papel higiénico, vá lá, é o mesmo principio das bolachas. Toda a gente precisa e gasta-se. Ainda assim, eu não precisava de 320 rolos de papel para consumo próprio, que foi como os meus amigos húngaros resolveram o assunto. Numa esplanada à beira do Tejo, entre tangos e tremoços, fiz um cálculo rápido e simples, de onde concluí que toda a gente que eu conhecia tinha um filho, filha, sobrinho ou vizinho no mesmo clube futebol. Ou seja, a precisar de vender os mesmos rolos de papel. Para além disso, a 3000 km de distância seria esquisito tentar vender papel higiénico no hospital. Percorri cuidadosamente todos os contactos suecos da minha lista telefónica. A Olívia, claro, a Olívia, só tem tem a Paola que já não está no futebol. A Sofia, interna de pediatria, casada com o Diego, futuro cardiologista. Têm um bebé de 2 meses que ainda não lhes exige estas andanças. Fomos ao casamento deles, há dois anos em Alicante, que rica festa, foi a primeira vez que bebi un gin tónico cor-de-rosa. Em casa deles também se usa papel higiénico. E a Manuela, pois, especialista em Medicina Geral e Familiar à vinda de Espanha, mas agora também especialista em Pediatria, que com a sua experiência de trabalho nos dois países é uma das poucas pessoas que me compreende totalmente quando me queixo das estranhezas do sistema de saúde sueco. A Manuela e o Javier não têm filhos mas também precisam de limpar o rabo. Lá dediquei 5 minutos a fazer enviar um WhatsApp bonitinho, com fotografia de papel e tudo, “apoiem o futebol infantil”. Salva pelos hermanitos, gracias! Só precisei de comprar 2 pacotes cá para casa e assunto arrumado.
Mas o apoio imposto aos pais para com os clubes não se esgota ao fazê-los impingir aos conhecidos quantidades desnecessárias de produtos inesperados. Inclui outras coisas. Pode ser, por exemplo, ter que vender salsichas num quiosque num dia de sol, enquanto decorrem torneios de futebol entre equipas de todas a escolas do município. Ou vender salsichas na sede do clube de bandy, uma sala aquecida e com vista privilegiada para a pista de gelo, onde pais corpulentos e cheios de frio comem tudo o que houver, a grande velocidade. Ou vender salsichas às 10 da manhã de um dia de chuva, em época de torneios de futebol já com restrições de pandemia (nesse dia vendi uma tablete de chocolate, um pacotinho de gomas e nem uma salsicha mas pus muita conversa em dia). Ou vender salsichas no pavilhão do gelo à quinta-feira, no átrio contíguo à pista pequena, enquanto as meninas de 5 ou 6 anos experimentam a modalidade, tal como a minha fez um dia, e os pais e irmãos andam por ali, aborrecidos. Sim, salsicha simples com pão, salsichas duplas com pão, salsichas sem pão, a salsicha entranhou-se nos hábitos suecos, é omnipresente. Mais exemplos de colaboração parental? No judo, por exemplo, é preciso ir limpar a sede do clube por duas horas, uma vez por ano. E no basebol, contou-me uma outra colega holandesa, uma vez por primavera há que apoiar por 3 horas a central de reciclagem, indicando às pessoas onde devem colocar cada coisa ou ajudando a gerir o espaço em caso de grande afluência.
Que é que acontece se não se cumprir com a sua parte? Se for ocasional e os miúdos estiverem nas camadas mais baixas dos clubes provavelmente não acontece nada. Se for repetidamente, há uma reunião conjunta onde nunca se apontam nomes e se apela à cooperação de todos. Os miúdos estão geralmente presentes nestas reuniões, têm perfeita ideia daquilo que os pais fizeram ou não e eles próprios sentem um misto de vergonha e responsabilidade com as quais pressionam os pais a cumprir a sua parte. Se mesmo assim não resultar? Suponho que se seja convidado a sair do clube, mas pelo que percebi isso é uma situação rara e as pessoas saem voluntariamente antes de se chegar a esse ponto.
Voltando à patinagem, sempre que há provas aqui na cidade o corrupio é grande no pavilhão municipal. Este dispõe de 2 pistas grandes, dimensão standart e uma menor, para aquecimento ou iniciados. A tal onde eu me agarrava ao corrimão até encontrar o meu equilíbrio. As condições são excelentes, há balneários para todos, corredores aquecidos, não há frio excessivo nas bancadas como em Tibro ou em Skara e é um absurdo pensar que tenha que se sair à rua para passar de uma pista para a outra, como acontece em Uddevalla! Também já estive nos de Mariestad, Lidköping e Borås, mas o nosso é melhor. As meninas de outros clubes e respetivas famílias deambulam horas seguidas a ver as provas umas das outras enquanto fazem conversa de ocasião e estão constantemente a comprar chá, café, bolinhos (confecionados e fornecidos por cada uma de nós, pois claro), salsichas, tostas, batidos ou até sopa! A primeira vez que me convocaram para o quiosque da patinagem foi uma semana depois da conversa com as mal-humoradas. Sem vontade de colaborar mas evitando afrontar de novo o sistema, inspirei-me numa doente recente e disse que me estava a recuperar de uma infeção intestinal que contra-indicava o manuseamento de produtos alimentares. Safei-me do quiosque e de levar bolinho e na altura a coisa ficou assim. E passado meio ano, quando voltaram a solicitar a minha presença ao balcão da banca dos comes e bebes, a minha disposição e vontade já eram outras e devo admitir que me diverti bastante. A polaca que lá estava comigo tratou da sopa e do café, eu fiquei com as tostas e os batidos e nas alturas mais concorridas apareciam mais umas mães e umas meninas da idade da minha a querer dar uma mãozinha nos bolinhos e latas de refrigerantes. A minha filha andava por ali a ver as exibições das outras e o meu filho, desinteressado do que se passava no gelo, corria para trás e para a frente, fintando grupos compactos, com outros da idade dele. O turno de quatro horas era o último do dia e enquanto limpávamos o espaço para quem viesse no dia seguinte, houve batido e cachorros quentes para todos. Isto foi, creio, num mês de Novembro.
Mas não é apenas o quiosque que tem que funcionar quando há provas aqui na cidade. O quiosque precisa de muita gente para operar continuamente, mas tudo o resto é igualmente coberto pela prata da casa, ou seja pais e mães. Um speaker, uma pessoa que controle o tempo, outra que tome conta das músicas das atuações, alguém quem tire fotos, outro que verifique amiúde se os júris estão bem e não precisam de nada (cada júri é habitualmente composto por três indivíduos que vêm de comboio e olham sobranceiros para tudo, amabilidade zero, mesmo que sejam educados e justos). O responsável pelo evento anda para trás e para a frente de telemóvel em punho a apagar fogos. E, importantíssimo, há o pessoal das “portinholas”.
Até agora falei sempre nas “meninas” porque... pois, mesmo sabendo que na língua portuguesa o plural é masculino, elas são muitas e ele é só um. Em Tibro acho que são dois. Mas nos níveis de Elite é quase equiparado o numero de desportistas do género feminino ou do género masculino. E por muito graciosas que sejam as raparigas, os rapazes, mais pesados e com maior potência muscular dão show, se forem bons. Aliás, aqui há dois Natais, fomos ao Liseberg, o parque de diversões de Gotemburgo, com divertimentos para crianças, montanhas russas e outras esquisitices para os mais crescidos, um clássico carrossel de cavalinhos brancos e dourados que sobem e descem enquanto giram ao som da música, uma aldeia do Pai Natal deliciosa e uma pista de patinagem do gelo. A minha filha, então já bem entrada na fase de piões, saltos e piruetas, levou os patins consigo (quer dizer, levámo-los nós, numa mochila às costas) e ainda recebeu meia dúzia de aplausos de desconhecidos. Mas a pista tinha como finalidade receber uma peça de ballet, em formato de patinagem artística. O lago dos cisnes. Assistimos atentamente, no meio da multidão, ao ar livre, temperaturas negativas. Até o meu filho se manteve concentrado. E por muito bem que as patinadoras fizessem o seu papel e eram de facto muito boas, a estrela da companhia era sem dúvida o Príncipe Siegfried. Excelente patinador.
Uns meses depois voltei ao quiosque da patinagem mas, no ano seguinte, durante uma competição local e tendo a organização percebido que eu era pediatra, não me escalaram nas comidas, mas sim nas “portinholas”. Um aquecimento descontraído para o que aí vinha. Em Março seguinte, ou seja, há quase um ano, recebemos uma das provas do torneio de Elite. Um evento em grande. Nessa altura já sabíamos que cada mãe ou cada pai teria que cobrir dois turnos e eu precavi-me a tempo e horas e pedi no hospital que não me escalassem nesse fim-de-semana, tal como a colega holandesa também fez. A Paulina estava em casa com o bebé e mesmo assim aceitou ir, de miúdo debaixo do braço, desenrascar duas horas em que aconteceu um contratempo qualquer. Desta vez li atentamente, em inglês, as regras das federações internacionais para não hesitar no meu desempenho de “porteira”. Basicamente o que se faz é abrir a “portinhola” que dá acesso à pista de gelo propriamente dita e fechá-la, nos momentos certos, antes e depois de cada prova. A parte difícil é resistir ao mau feitio e impaciência dos treinadores, por vezes a escorregar para a agressividade, que na altura em que os patinadores entram para aquecimento conjunto antes de cada série de provas querem geralmente que a porta abra antes de tempo e quando é o momento do “seu” atleta mostrar o que consegue fazer também costumam insistir para “dar um jeitinho” antes do desportista anterior terminar os agradecimentos ao público e ao júri. A razão de ser preferencialmente eu, a Paulina ou a holandesa a estarmos ali a abrir e fechar a “portinhola”? Se alguém cair e se aleijar convém que esteja um profissional de saúde por perto e que chegue primeiro (e estas regras não são locais). É um pouco bizarro pois na prática, com o gelo perfeitamente liso e sem patins, eu não conseguiria dar nem um passo antes de me esbardalhar toda. E eles, na grande maioria das vezes caem sem se magoar (a não ser no orgulho), seria inaudito precisarem de mim. Mas o local, praticamente dentro do gelo, é privilegiado para admirar cada atuação e para observar a relação de cada instrutor com os seus patinadores.
Calhou-me começar por um turno de treinos individuais, tudo muito organizado, speaker, tempo contado. No dias dos “ensaios” fiquei fascinada com os diferentes tipos de treinadores que me passaram à frente. Suecas relativamente jovens, clutch de marca a tiracolo, unhas compridas, interesse principal no écran do telemóvel de última geração, mal acompanhavam os exercícios pelo canto do olho e iam dizendo que tudo estava bem, “Vad duktig du var!”. Havia dois russos, um gorducho e barbudo de olhar gélido e outro alto e magro, cabelo claro e aspeto igualmente glacial. Não percebi o que diziam entre eles mas pareciam odiar-se mutuamente, embora se tolerassem. Ambos rebaixavam os seus patinadores, para quem falavam em inglês, chegando a humilhá-los, até. Olhares de desdém permanentes. Um deles chegou a virar costas e sair a meio de um treino. Uniram-se no entanto ao tentar enxovalhar uma outra treinadora, aspeto eslavo e a quem se dirigiram em inglês. A mulher, mais baixa que eu e roliça, não lhes ligou nenhuma e continuou a dar indicações detalhadas em voz baixa e gentil às suas patinadoras. Afinal encontrei-a no dia seguinte no corredor fora da pista e não era nada roliça, pelo contrário, mas tinha debaixo do braço 3 casacos e um gorro que depreendi que vestira em simultâneo no dia anterior e que a faziam parecer um urso. Salvo estes 3 estereótipos, que fixei na memória, havia treinadores com comportamento “regular”, que tanto em sueco como em inglês elogiavam às vezes, corrigiam outras vezes, franziam as sobrancelhas e diziam “Consegues melhor amanhã” se fosse preciso. Curiosamente, havia uma treinadora que falava sueco com pronuncia claramente espanhola e que usava esse mesmo idioma para se comunicar com duas das suas três instruendas. De resto, lembro-me na altura de pensar se a outra de Tibro teria tido um treinador russo quando era mais nova.
Gostei muito de estar de serviço à “portinhola” no dia seguinte, com provas a sério. Calharam-me desportistas de 16, 18, até aos 20 anos. Há detalhes interessantes que se retêm. Uma miúda no final da adolescência, música poderosa na atuação, cabelo curto, maquilhagem mínima, um traje tão despido de enfeites quanto um vestido de competição pode ser, marcas antigas de cortes de lâmina em ambos os braços, ficou feliz com uma pontuação mediana. A menina bonita de Tibro, sobrinha não sei de quem, que fez birra com uma pontuação altíssima e o seu irmão mais novo que sempre sorridente e genuinamente afável conseguiu sem vacilar uma pontuação ainda melhor. Os três rapazes de Gotemburgo cujos treinos no dia anterior haviam prometido grandes provas e não desiludiram. A rapariga que caiu quatro vezes durante os curtos minutos de prova, levantou-se outras quatro e prosseguiu, sempre a sorrir, chegou ao fim, agradeceu, mas ainda com uns dos pés dentro do gelo só disse “Mas que merda é que se passou ali dentro?” antes de começar a chorar. E outros houve, que já não recordo.
A minha filha e as coleguinhas, demasiado inexperientes para aquela competição, estavam felicíssimas com o seu papel de “apanha-bolas”. Em determinados momentos de pausa entravam de patins, baldes cheios de gelo na mão e empenhavam-se a preencher até disfarçar as marcas mais profundas escavadas no gelo pelos lâminas dos patinadores mais pesados nas execuções técnicas mais elaboradas. Depois delas entrava em cena o Icebear, o trator gigante que alisa o gelo com as suas enormes esfregonas giratórias geladas. Mais 5 minutos de pausa para secar e passava-se para a série de provas seguintes.
Este ano, claro, não há nada disso. Quase nada, as bolachas e a roupa interior mantêm-se! A pandemia mudou tudo. Na primavera passada, quando se começaram a cancelar eventos e a restringir o numero de participantes em ajuntamentos, crianças e adolescentes puderam continuar com treinos desportivos. Na altura ainda houve qualquer coisa em Tibro, uma prova, creio, mas já não deixei a minha filha sentar-se no balneário. Levou um banquinho e calçou-se no corredor antes de entrar no gelo. A Paulina ficara em casa com o bebé e o Vincenzo, atarantado com a pressa para levar o Alfonso a outro compromisso qualquer, olhou para nós espantado. Mas voltou atrás e no minuto seguinte a Claudia também se sentava cá fora.
A maior parte das atividades foi sendo cancelada ou adiada mas a patinagem foi seguindo. Em junho esteve-se vai-não-vai para suprimir o campo de verão de patinagem. A Claudia e a minha filha participaram pela primeira vez no ano passado, evidentemente tudo pago à parte. Obviamente adoraram. Decorre assim que começam as férias, uma semana em Lidköping, a cinquenta quilómetros daqui. As miúdas treinam mais de 5 horas por dia, dormem nos colchões insufláveis que levarem no chão de uma escola e recebem 4 ou 5 refeições diárias. Levamos as bicicletas penduradas nas traseiras dos carros para que elas possam percorrer autonomamente o quilometro e meio que dista entre o local onde residem e a pista de gelo, fácil e alegremente, varias vezes por dia. Se o tempo estiver bom ainda vão à piscina. Este ano, depois de hesitações e adaptações, mas com os números da primeira vaga de corona estabilizados por baixo, o evento manteve-se. Aqui mais uma vez é pedido aos pais que se voluntariem para ajudar, mas só quem quiser. Como os afazeres são profusos, tal como a responsabilidade, quem participar como pai (ou mãe) tem direito a uma substancial redução no montante que a respetiva filha (ou filho, havia lá meia dúzia deles) tem que pagar. O Vincenzo inscreveu-se, o que nos deu evidentemente alguma segurança. Com as terríveis imagens da sua Itália natal muito frescas na memória sabíamos que faria o impossível para salvaguardar a saúde e bem estar de todos. A minha filha festejou os seus 12 anos enquanto estava em Lidköping e cinquenta quilómetros não é nada, pelo que fomos lá e levamos um cobiçado bolo em forma de flamingo. O tempo estava tão bom nesse dia que entre treinos pegamos nas miúdas e fomos dar um mergulho ao lago (mas isso já é conversa para outra história).
O verão passou e no inicio de agosto recomeçaram as aulas no gelo. A minha filha falhou duas semanas, quando fomos a Portugal, mas prosseguiu no mesmo dia em que regressámos. Não faltou mais nenhuma vez. Este ano, ela e a Claudia treinam 11 horas por semana. À segunda e terça-feira duas horas de gelo e uma hora de treino físico. À quarta e quinta-feira duas horas de gelo. Ao sábado de manhã uma hora no gelo para treino livre, que elas não perdem por nada, onde podem fazer o que quiserem mas tendo presente a treinadora principal que as vai orientando e ajudando a melhorar. Como o pavilhão tem capacidade para isso, há um horário em que uma das pistas está aberta ao publico em geral. É aqui tão perto de casa (e a Claudia mora no mesmo bairro) que desde há dois anos as deixamos ir sozinhas. Outras vezes eu também vou, porque é divertido e afinal em setembro comprei uns patins novos! No fim de outubro, contudo, as restrições cada vez mais alargadas tiraram-nos também esse pequeno escape gelado, aqui ao pé da porta. Já não há nada para fazer a não ser passear na rua. A piscina com os escorregas há muito que encerrou (e a simples, de natação, também), tal como a biblioteca e tudo o o resto que pudesse ser de interesse. Das atividades dos miúdos só restaram os desportos de gelo e as aulas de música, que agora são on-line. Há um mês fomos ao cinema. Num dia de tédio, víamos montras na cidade deserta, quando percebemos que depois de meses encerrados os cinemas tinham reaberto cumprindo as recomendações dos tempos de pandemia. Oito pessoas de cada vez. Encontramos um filme que nos seduziu, uma qualquer animação de Natal, havia lugares à justa para nós. A outra família sentou-se na fila 2 e nós na 19.
O frio tardou a vir e novembro já ia adiantado quando se reuniram as condições para abrir a enorme pista ao ar livre do cimo do monte. A gestão da mesma pertence ao clube de bandy e se até aí o meu filho e os outros meninos treinavam aqui no pavilhão (o que era muito prático dada a proximidade, mas menos admirável e inspirador), agora dispondo de terreno próprio puderam passar a fazê-lo duas vezes por semana. Alguns dias de semana ao fim da tarde (noite fechada, na Suécia, mas há holofotes) e aos domingos quase todo o dia a pista costuma estar à disposição de quem quiser. A troco de 20 coroas patina-se em espaço aberto, o vento no rosto, sensação de liberdade. Com as igrejas fechadas outra vez, catequese cancelada e sem outras obrigações dominicais, passei a conduzir até lá acima todas as semanas para patinar com os miúdos. Como dizia, sorrindo, a quem me perguntava, a minha filha treina à segunda, terça, quarta, quinta e sábado, mas aos domingos vamos lá acima, não se vá ela esquecer de como se faz!
Inesperadamente, a meio de Dezembro, fechou também o pavilhão do gelo. As miúdas souberam-no numa pausa entre duas horas de treino. Desta vez houve choro e carinhas muito tristes. Inexplicavelmente os níveis mais avançados de hóquei tiveram autorização para continuar, mas na patinagem nem o primeiro grupo o pode fazer (a minha filha e a Claudia estão no segundo grupo e daqui a dois ou três anos quando estiverem ao nível das melhores do primeiro grupo, se quiserem prosseguir na modalidade terão que o fazer em Tibro). Não consigo avaliar a importância desta medida... As miúdas, que mais coisa menos coisa frequentam todas as mesmas escolas e estão em contacto diário umas com as outras, treinavam em grupos de 10-12 de cada vez. A área do gelo é tão grande, que nem que fossem grupos de 40 conseguiriam manter a distância de segurança. Os pais, há muito tempo que tinham sido banidos do espaço interior (se bem, que mais uma vez, as bancadas estão preparadas para acolher milhares de pessoas e nós eramos no máximo meia dúzia de cada vez). O clube de patinagem conseguiu nos dias seguintes negociar dois períodos por semana com o clube de bandy, evidentemente às horas que não lhes fazem falta a eles, mas foi melhor que nada. E ainda havia a possibilidade de lá ir acima mais assiduamente, durante o horário de abertura ao público.
No cimo do monte, para além da pista de gelo, há as pistas de ski, que ainda não abriram pela escassez de frio e neve (a avaliar pelos dias de ontem e de hoje pode ser que amanhã já se possam usar), há dois circuitos para trotinetes e bicicletas “de truques” e há imensos trilhos para fazer a pé, à volta dos lagos e pelas florestas. Há meias cabanas aqui e ali, uma espécie de telheiros de duas paredes na margem dos lagos, junto a locais onde se pode fazer lume e grelhar. Caixas de lenha encontram-se amiúde, sempre bem providas. De modo que sair para passear e grelhar é relativamente simples e popular. Apesar de a maioria das pessoas ter evitado reuniões familiares de Natal e Ano Novo, passeavam em pequenos grupos ao ar livre, conversando e mantendo a distância umas das outras. Há sempre imensa gente no monte e, grelhados na natureza, acho que nunca tinha visto tantos durante o inverno. E assim se foi, natural e rapidamente, espalhando a palavra de que em Skövde havia uma pista de gelo de dimensões generosas, ao ar livre e ainda aberta.
No dia 1 de janeiro fomos patinar em relativa tranquilidade. Eu própria andei por ali até me fartar e os miúdos tinham espaço à vontade. Tanto estava descontraída que tive calma e disposição para resoluções de Ano Novo. No dia 2 de janeiro, aproximadamente à mesma hora, voltamos lá acima. Era indescritível a quantidade de gente que lá estava. Tirei uma foto, “Está pior que o mercado de sábado...” e mandei ao meu irmão. Escasso espaço nas bancadas para nos calçarmos, mas vamos lá tentar. Eu, se não tivesse já há tempos comprado o cartão da temporada, não tinha desperdiçado 20 coroas nesse dia, porque tal como previ, levei uns 7 minutos desde que entrei no gelo até voltar a sair e ter de novo as botas nos pés, frustrada pela impossibilidade de deslizar como deve ser. Não esperei nem meia hora para mandar sair os miúdos dali para fora. Se bem que as pessoas não estivessem propriamente a tocar umas nas outras e fosse ao ar livre, era confusão a mais. No dia seguir nem nos ocorreu lá ir. Mas todos os outros devem ter ido, pois ao início da noite recebemos a informação de que a pista tinha decidido encerrar todos os períodos de abertura ao público. E eu, que comprei patins novos este ano, não sei quando vou poder voltar a calça-los.
Sinto falta de entrar no pavilhão, ouvir a música intensa e de ficar uns minutinhos a ver os treinos. Imagine Dragons, Ava Max, Coldplay, suequices que não reconheço. Qualquer música que seja vigorosa e poderosa serve para as impulsionar. Gosto de vê-las a treinar, em simultâneo mas cada uma para seu lado, um espetáculo de certa forma caótico mas estupendo, dá vontade de poder estar lá com elas. Muitas vezes caem em sintonia, como se tivessem combinado. Ficam sentadas, de rabo no gelo e olhar espantado, a rodar sobre si mesmas até o impulso da velocidade se esgotar. Levantam-se, sacodem-se, dão uma gargalhada e prosseguem.
Tenho uma filha de 12 anos que adora patinar. Não sei se vai manter a motivação, se se vai desinteressar, se vai mudar as suas prioridades ou se vou vê-la um dia numa competição de Elite. Mas não é só o destino final que interessa, é também o caminho até lá chegar e o que se tira dele.
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