Parte 1 - Desinspiração
(12 e 13 de janeiro)
Hoje não tive inspiração para escrever. Não obstante a decisão de o fazer diariamente, estou firmemente a tentar cumprir, mas na data presente o ânimo não compareceu à chamada. Acontece, pelos vistos. Ao menos um parágrafo, é o lema. Nem que seja para exercitar os dedos e as sinapses. Sim, é importante treinar os dedos... É como com as endoscopias, depois de um período de verão de oito semanas (em não temos direito nem a uma horinha para os nossos doentes pediátricos se não for mesmo muito urgente)... Mesmo que os neurónios hesitem e tardem a dar o arranque, aos solavancos, as mãos sabem como se faz e começam com naturalidade. Reconheça-se algum valor às rotinas. E o restante vai-se então processando, com alguma fluidez até, sem desigualdades no desempenho em relação aos dias melhores. Por isso, ao menos um parágrafo... clica aqui, carrega ali e pode ser que com a ajuda dos automatismos a coisa pegue!
O tempo encolhia, a inspiração não vinha, a frustração esticava. Só um parágrafo, é rápido! Frases e ideias flutuavam na minha mente enquanto caminhava, mas teimavam em jogar às escondidas se me sentava para as apanhar. Abri o texto em que estava a trabalhar, pegando na ideia deixada a meio no dia anterior. Apesar de me agradar o rumo que levava, sentia-me precocemente saturada e atordoada com tantos conceitos, imagens, idealizações que queria passar para o papel. Não, para o écran, que o papel serviu até há uns meses para as últimas correções, mas ultimamente já nem isso. Insisti, ainda assim em digitar qualquer coisa, forçando a vontade, mas até a logística me tramou. Primeiro foi a bateria do iPad a assinalar falta de vida, depois foi o teclado com a mesmas queixas (ele, que só precisa de ser ligado à corrente uma vez por semestre) e para completar até os Bluetooth dos dois aparelhos resolveram ficar de relações cortadas. Enquanto corrigia esses pequenos contratempos, mais um adiamento. Lembrei-me de um assunto de relativa importância que necessitava esclarecer com a possível urgência. Um telefonema para aqui e dois para acolá, mesmo assim não foi demais. A contrariedade que se confirmou (de forma alheia à minha vontade desapareci das listas de recenseamento eleitoral) aliada à falsa empatia de uma das pessoas que me atendeu, deixou-me um amargo de boca que rapidamente me contaminou tanto o corpo como o humor. Um peso no cimo das costas e outro à largura da testa. Se antes redigir estava difícil, agora estava fora de questão. Tentei respirar fundo, descontrair, distrair-me com qualquer coisa. Talvez uns minutos de Netflix! Péssima ideia afinal, perdi tempo a mais, fiquei presa num enredo expectável em vez de arejar pensamentos e flexibilizar as minhas próprias ideias. E a nuvem por cima da cabeça cada vez mais densa, asfixiando-me tanto quanto o relógio que avançava e me mostrava que havia tarefas práticas de vida diária a chamar por mim, inadiáveis e que não se compadeciam com o meu agastamento.
Fim de tarde, que em início janeiro é noite escura, treino no gelo para o filho e para a filha. Por boa coincidência em horário simultâneo e no mesmo local, metade da gigantesca pista ao ar livre para os jogadores de bandy e a outra metade gentilmente cedida à patinagem artística. Vamos então para o cimo do monte, onde me hão-de sobrar noventa frios minutos sem nada para fazer. Esquiar! Posso tentar esquiar, talvez congele o mau humor!
Este será o terceiro inverno em que tento aprender a esquiar. Ski de fundo, cross country, aquele que puxa bem pelo corpinho, nada de sequências de descidas inclinadas por uma montanha abaixo. Nunca aprendi propriamente a esquiar, vou esquiando. Dediquei não mais do que dez aborrecidos minutos a uma pesquisa no YouTube que não me ensinou grande coisa e depois, in loco, passei a imitar os movimentos que os esquiadores mais lentos fazem (o que não significa que sejam os piores, às vezes são excelentes desportistas que estão por uns minutos a afinar a técnica). Um curso de fim de semana seria interessante, mas passa dos trezentos euros e a minha curiosidade nunca foi assim tão folgada.
Os skis que tenho comprei-os baratíssimos, “só para experimentar”, uns velhíssimos e descontinuados Rossignol, estampados com as cores de França. Que vamos lá a ver, mais ninguém compraria. Nesse primeiro ano levei-os a passear em duas, três penosas ocasiões, durante as quais caí incontáveis vezes, pelo que me senti muito feliz por não ter desperdiçado mais do que o dinheiro de um hambúrguer naquelas coisas. O ano seguinte correu incrivelmente melhor. Terei esquiado uma dúzia de vezes, metade delas acompanhada por amigos no mesmo nível que eu. Percebemos em conjunto como nos devíamos equilibrar e mover para diante (devagarinho, dentro dos trilhos desenhados na neve e sem subidas nem grandes descidas...) e constatámos em conjunto que toda a nossa prole adotara costelas nórdicas, tal a facilidade com que deslizam pela neve. Fiquei com vontade de ter uns skis melhorzinhos mas nunca encontrei, usados, outros que se adequassem ao meu peso e altura, mesmo subindo consideravelmente a fasquia do que achava aceitável pagar. Hesitava em adquirir uns na loja de desporto, talvez não valesse a pena o gasto. Contudo, em tamanhos júnior, é fácil esbarrar sem esforço com equipamento de qualidade, quase novo e a bom preço (os miúdos crescem depressa), pelo que os meus filhos exibem atualmente reluzentes, elegantes e cobiçados Fischer, pretos e amarelos. No ano passado não houve neve que se visse nem frio que se sentisse, pelo que os skis nem sairam da garagem. Este ano a estreia fez-se há uns dias, inicio de janeiro. Já perdida na memória a fraca qualidade do que levava no pés.
Esquiámos sobre a primeira neve da temporada, sol brilhante, pistas limpas e trilhos bem formados, com espaço suficiente para todos, até totós como eu. Passados os primeiros minutos de ansiedade em que descobri que ainda me conseguia mover com um mínimo de dignidade, o exercício e o desafio tornaram-se revigorantes. É revigorante para quase todos, creio, ou não haveria tanta gente nas pistas, muitos deles sem grande mestria. Chamou-me a atenção um senhor já de idade, que esquiava em roupas térmicas justas e adequadas (e eu de calças de passeio e camisola polar, tal como mais uns quantos inexperientes) e com uns skis que não sendo novos eram claramente melhores que os meus. Descia em velocidade a rampa do início da pista, mantendo-se nos trilhos com os joelhos fletidos, corpo inclinado para a frente, bastões para trás, cabeça erguida de frente para a brisa. Pelos sulcos da face dava-lhe oitenta anos. Pelo sorriso largo estampado no rosto nove ou dez. Seguiu de facto com a ligeireza de um miúdo, deslizando com leveza e perfeição e já em terreno quase plano continuou graciosamente, apenas um elegante impulso aqui e outro ali com os bastões. Eu, que me esforçava num trilho paralelo, arrastava-me, em comparação. Chegando ao fim da pista tínhamos que dar a volta e fazer o percurso inverso, agora em discreta subida. Aí confirmou-se a presumível idade do senhor, a agilidade das pernas não era suficiente para acompanhar o ar de felicidade.
Andámos por ali um bom bocado. Quando voltei para casa estava moída nos músculos mas relaxada no espírito. Por isso, por que não repetir a dose? Estou a precisar de apanhar ar fresco, revigorar. Os miúdos vão às suas atividades em patins e eu vou esquiar.
Infelizmente, nesse meu dia desinspirado, logo ao estacionar tornou-se óbvio que a experiência não ia ser igual. Os canhões de neve ligados inviabilizavam o percurso que eu esperava percorrer. Não havia, aliás, trilhos desenhados no local onde entrei na pista. Fui avançando lenta e trabalhosamente até ao inicio do único troço esquiável. Havia tanta, mas tanta gente que tive vontade de desistir. Que isto na prática é como ser verão e morar ao pé da praia, chega-se do trabalho e vai-se dar um mergulho rápido. Esquiadores velozes e experientes passavam por mim aos vinte de cada vez, quase voando, alguns lançando olhares furiosos a quem lhes bloqueava a desenvoltura. Não obstante aventurei-me, pois a alternativa era esperar ao frio durante mais de uma hora. Correu bem até ao lago, trajeto pouco acidentado, ideal para iniciantes. Mas depois a pista disponível nesse dia obrigava todos a uma mão cheia de ásperas subidas, descidas a condizer, um percurso algo duro e cansativo, onde fui ultrapassada não só por grupos ruidosos dos tais esquiadores experientes, mas também por casais com pouca técnica mas muita genica, pais com crianças que não tinham sequer tamanho para andar na escola mas se desembaraçavam perfeitamente na neve e até algumas velhinhas sorridentes, solitárias e sem temor. Tensa e estafada, cumpri, consegui dar a volta completa! Com algum orgulho no meu feito, mas frustrada com o fraco desempenho dos ultrapassados Rossignol. E não propriamente mais relaxada, isso não... Descansei um par de minutos, de volta ao inicio da pista, observei o vai e vem dos esquiadores e arrastei-me depois de volta, esquiando pela neve não trilhada, até às proximidades do sítio onde treinavam os miúdos e onde o meu carro ficara. Preparava-me para me descalçar quando fui abordada por outro esquiador. Desconhecido, acho eu. Boas roupas, bons skis, gorro puxado para baixo, gola puxada para cima, não posso saber se já o havia visto antes ou se o voltei a ver depois. “A neve estava tão boa no domingo e hoje é isto...” disse ele, desconsolado. Falava tanto para mim como para si mesmo. “Realmente, está muito mau” assenti, “ainda por cima só uma pista e a abarrotar. E eu ando mal, tenho medo daquela gente toda!” “O mesmo comigo”, suspirou ele, soando desolado, “o mesmo comigo... Boa sorte!” E desapareceu aos tropeções, pelo caminho por onde eu tinha vindo. E aí, ao olhar para ele, deu-me vontade de rir de mim mesma e senti-me repentinamente melhor. Afinal, não estava sozinha em todos os meus triviais infortúnios! Às vezes só precisamos de um pouco de compreensão, solidariedade porventura, nem que seja em detalhes, para que nos sintamos melhor. Metade das pesadas e inúteis angústias que não me faziam falta ficaram ali, enterradas na neve e quando cheguei a casa consegui escrever as minhas linhas. Done!
Não fazendo parte deste texto, acrescento como apontamento final que decidi comprar um skis novos, de uma coleção básica e relativamente barata, adequada para iniciantes. Vou encomenda-los online nessa cadeia europeia que tem equipamentos para dezenas de desportos debaixo do mesmo teto. É que os que tenho agora são mesmo maus demais!
Parte 2 - Persistência
(31 de janeiro)
Passou um mês desde a resolução de ano novo que me tem diariamente prendido a este écran, invariavelmente acompanhada por uma ou várias chávenas de café instantâneo. Um mês dos grandes, trinta e um dias. E em todos eles escrevi. Às vezes melhor, outras pior. Por vezes uma página, mas em duas ou três ocasiões apenas um parágrafo. Talvez escrever, como tantas outras coisas, possa ser uma questão racional, decisão, vontade e persistência, em vez de um jogo emocional, hoje tenho inspiração, amanhã não tenho. Ao fim de um mês creio que escrever é uma escolha (já a qualidade dos escritos... a ler vamos...).
A compra dos skis também não foi linear. Procurei no site da tal loja, li a descrição, escolhi uns que necessitavam de manutenção mínima e paguei. End of story? Claro que não! Dois dias depois um email automático e o dinheiro a entrar de volta na conta (já vi este filme antes, noutra situação!), tinham esgotado entretanto! Só que a partir do momento em que a decisão de os comprar estava tomada, já não queria continuar com os velhos... sem contudo me decidir a investir nuns novos. Brincando com a coisa, queixei-me no Facebook, onde um colega de diáspora que mora mais para norte mostrava num filme as habilidades dos filhos pequenos. Descreveu-me os que comprara recentemente para a esposa, eram assim e assado, muito bons, estavam muito satisfeitos, vai lá ver às lojas tal. Mais por curiosidade que outra coisa, fui olhar. Que bonitos eram, vermelhos e pretos, que eficientes pareciam. E o preço não era tão proibitivo como temia. “Tem para mim?”, ouvi-me inesperadamente a perguntar. A colaboradora da loja olhou, procurou, desviou e por fim abanou a cabeça “É que temos vendido muitos, talvez haja mais para a semana”. Ora o fruto proibido é o mais apetecido, portanto vamos à outra cadeia de lojas de desporto. Aí encontrei uns que se me adequavam. De outra marca, azuis e brancos, mas a mesma tecnologia e vontade de os pôr nos pés. Mas ainda hesitava, o que creio que era visível, pois o rapaz da loja, que pacientemente me mostrou e fez experimentar os que tinha disponíveis (esses não ficaram bem, vamos tentar estes, talvez aqueles ali) só acreditou que eu os ia mesmo levar quando paguei.
No dia seguinte foi um desastre! Deslizavam tão bem que mal me aguentava em cima deles. Mas depois de ter reaprendido a manter o equilíbrio, só me arrependo de não os ter comprado mais cedo. Obviamente não vêm revestidos por magia, não me tornei excelente esquiadora, nem nada que se pareça, mas ir para as pistas tornou-se ainda mais divertido!
Perdi um pouco o fio à meada nas considerações finais (acho eu!) do texto a que me tenho dedicado nas ultimas duas semanas (e não, não é o mesmo referido uns parágrafos ali acima, esse já está no blog). Já vai longo, gosto dele, mas falta ali qualquer coisa. Para não esmorecer nem perder o ritmo decidi rever este, que acreditava estar já pronto e afinal não estava. Lavei-lhe a cara, acrescentei-o, abrilhantei-o, voilá, está como novo! Com o outro, amanhã correrá melhor. Hoje não, que o dia está bonito, sete graus abaixo de zero, mas os passarinhos voltaram a cantar e o sol brilha, há tanta coisa para fazer lá fora!