terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Carnaval ou Bolos com Creme

 

      Na Suécia não se comemora o Carnaval. Mas na sétima semana do ano, a vecka sju, há ferias escolares, a sportlov, férias de desporto ou, em tradução livre, férias de inverno. Calha a meio de fevereiro e nessa altura é quase garantido estar frio e haver neve. Assim todos podem usufruir de uns dias para se divertir sem preocupações e sem horários. Creio que na região de Estocolmo a interrupção escolar se dá na semana nove e algures no resto do país, talvez para para sul, na semana oito



Enquanto morei em terras lusas nunca me tinha ocorrido que o tempo de um ano se pode contar em semanas e não em meses. Os suecos orientam-se quase de cor, já eu vou vendo em que semana estou pela página inicial da propaganda dos supermercados. Tenho, após seis anos disto, alguns pontos de referência. A tal semana sete em meados de fevereiro, quatro vezes quatro dezasseis mais uma para compensar os dias de 28 a 31, logo a semana dezassete há-de ser lá para fim de abril, a semana vinte e quatro é para meados de junho quando a escola termina, na semana trinta e quatro a escola já recomeçou mas o meu aniversário ainda não chegou, a semana quarenta e quatro volta a ser de férias escolares e apanha sempre o primeiro de novembro e para finalizar, o Natal instala-se na semana cinquenta e dois. Nas restantes... é fazer as contas com um calendário. Há uns anos perguntei a um colega quando ia de férias. “Vinte e seis”, foi resposta. Estive quase a perguntar “Vinte e seis de junho ou de julho?”. Ainda bem que não o fiz, passado umas horas percebi que se referia à semana... Por causa desta forma alternativa de medir o tempo, uma das palavras que mais frequentemente dizemos em sueco mesmo que estejamos a falar em português, inglês, espanhol ou o que seja, é a palavra “semana”, vecka.


Portanto, na vecka sju os miúdos estão de férias e convém ter alguma coisa planeada para fazer com eles. A maneira mais económica de fazer a coisa é ir brincar na neve e no gelo ou ir ao parque aquático interior e aquecido, aqui na cidade. Para acrescentar algo de novo é consultar a pagina web da localidade onde vivemos e das terras vizinhas e ver que atividades gratuitas ou de baixo custo se encontram. A maneira mais dispendiosa seria ir para uma estância de ski dentro do país (o que nunca fizemos, porque os preços são proibitivos nesta altura) ou, delírio onírico, esperar por um ano em que a semana sete coincida com o Carnaval e aproveitar para rumar a terras lusas.

Tal como nos invernos anteriores, no ano passado em fins de janeiro lá me sentei a planear atividades para a semana sete. De domingo a quarta feira, apenas, pois de quinta a sábado tínhamos outros projetos. Patinagem e piscina, pois claro, trenós não que há um ano não havia neve nenhuma. Numa espécie de museu interativo para os mais novos havia um workshop de qualquer coisa engraçada. E olhem, que giro, na terça-feira vão contar histórias infantis ao ar livre lá em cima no monte e fazer um mini-teatro, vocês já começam a ser crescidos para isso mas depois hão-de acender-se os grelhadores, basta levar pão e salsichas, marshmallows se quiserem e o dia está feito. Para terminar, na quarta-feira, uma feira de segunda mão em Skara, nuns moldes diferentes do habitual.

As feiras (ou lojas) de segunda mãos são eventos (ou locais) interessantes. É curioso como um objecto que para mim não vale nada e do qual não me importo de me desfazer, para outra pessoa pode ser um achado proveitoso e ter de facto utilidade. Levando este pressuposto ao extremo, numa cidade a meia hora daqui fez-se, exatamente, uma feira de trocas. Troca por troca, dinheiro não entra. Cada pessoa levava cinco artigos que eram expostos por duas senhoras, simpáticas voluntárias, numa sala grande cheia de mesas e prateleiras. Os cinco talões recebidos eram convertíveis em até cinco itens a gosto, dentro do que houvesse disponível. Foi relativamente fácil encontrar quinze inutilidades dentro de casa (para mim e para cada um dos meus filhos). Agora já não me recordo, mas no lote incluía-se uns brincos comprados e nunca usados, uma pequena mala de uma marca catalã já gasta, um cavalinho de cabo de vassoura encostado à parede há anos, um jogo de tabuleiro sem piadinha nenhuma, um objecto para massajar as costas (dos quais tínhamos dois ou três) e por aí fora. Da mesma forma já não sei nomear tudo o que trouxemos de volta. Espadas de pau e bolas de Pokémon entraram cá em casa de certeza, porta-moedas com unicórnios e livros para meninas também. Da minha parte, no parapeito da janela tenho duas renas estilizadas, metálicas, com um porta-velas abdominal em vidro. Há uma taça do IKEA enorme, uma saladeira metálica tão absurdamente grande que nunca me serviu para nada e onde creio que se conseguiria dar banho a um bebé. E o meu corredor ganhou um quadro singular, entre o admirável e o bizarro, que me fascinou de tal modo que nem achei que fizesse parte do lote de elementos permutáveis, tive que ir perguntar para confirmar. Tem aproximadamente trinta por sessenta centímetros, na vertical, enquadrado por moldura estreita e simples, dourada. Uma assinatura que não consigo ler, data de 1976. Uma paisagem de praia onde um homem e uma mulher, silhuetas distantes, nuas e de costas para o observador, dão as mãos e contemplam o mar revolto e nada convidativo, por entre um idílio de flores e natureza, corços a procriar e aves a emitir seus trinados. Mas na linha do horizonte há duas torres metálicas, refinarias talvez, que emitem fumo negro, dissolvido no enorme céu azul. Mais acima, substituindo o branco das nuvens, há uma confusão de cores de onde sobressaem dois rostos orientais, um de bigodes, ambos com trajes tradicionais que se transformam em mísseis, sorriso sarcástico. E dominando a parte superior do obra vários mosquitos coloridos, cativantes, grandes e ameaçadores, promessas de praga bíblica. É difícil definir numa só palavra a impressão causada pelo quadro, mas de bom grado teria permutado os nossos quinze pertences e mais qualquer coisa por esta obra!



Passada a primeira etapa da semana, na quinta-feira dessa semana viajámos de comboio para Estocolmo, para desfrutar de outra possibilidade de diversão em alta com orçamento em baixo. Uma viagem de barco até à Finlândia. Mal comparado, é como ir a Badajoz comprar caramelos nos anos oitenta! Também há a rota da Estónia e a da Letónia mas, convenhamos, no inverno Helsínquia é muito mais interessante do que Tallin ou Riga e os navios que vão para a Finlândia são maiores, mais estáveis e com mais oferta de diversão. O ferrys atravessam o Báltico continuamente, nos dois sentidos. Há-os de várias companhias, umas transportam exclusivamente mercadorias, outras levam também passageiros. Os passageiros são não só os condutores dos camiões (muitos) nem famílias nos seus veículos particulares em busca de estrada para férias (bastantes), são também pessoas em passeio que entram e saem a pé (imensas). Os preços para esta última versão são extraordinariamente acessíveis. Um camarote para quatro, com casa de banho, janela e televisão, custa cerca de 100 euros ida e volta, ou seja duas noites. Zarpa-se de Estocolmo pelas quatro da tarde, as primeiras cinco horas fazem-se em navegação pelo arquipélago, ilhas de pedras lisas, rasas, castanhas de terra ou brancas de neve, casinhas vermelhas de madeira sob verdes abetos e ancoradouros privados. Os telemóveis sempre com rede, está-se absolutamente em território sueco, permitem que se mandem fotos para a família e amigos pois a paisagem é bonita de ser partilhada. Ao entrar em mar aberto, não havendo senão água a mostrar-se pelas janelas, dá-se depois um longo passeio pelo andar principal, qual centro comercial com uma dúzia de lojas que não se adaptam a todas as bolsas, assiste-se a um número de acrobacias e outro de música ao vivo no corredor central, recolhe-se ao camarote para comer do que se tiver trazido (ou gasta-se mais do que o preço da passagem num restaurante), assiste-se mais tarde ao espetáculo gratuito no salão principal (canta, dança, patinagem, magia...) onde eventualmente se poderá decidir despender, com satisfação até, mais dez ou quinze euros numa qualquer bebida com álcool e refrigerantes para os mais novos, antes de se ir dormir satisfeito. Quem se interessar por tal coisa pode ainda aproveitar o quase-casino (máquinas de jogo há-as espalhadas por todo o lado mas para, além delas, há uma sala que nunca tive curiosidade em espreitar onde o dinheiro rola depressa) e a discoteca. Quem traz filhos acorda cedo, muitos decidem dar-se ao pequeno luxo de pagar um extra para usufruir do fausto pequeno almoço a bordo enquanto desfrutam da paisagem, outra vez junto a terra, os telemóveis agora em roaming. Os noctívagos despertam dez minutos antes do barco atracar, recolhem as suas coisas às três pancadas e saem ensonados e desgrenhados. Das nove da manha às quatro e tal da tarde passeia-se por Helsínquia, faz-se o que se quiser. Os pertences de cada um ficam quietinhos nos respetivos camarotes e à tarde tudo se repete, mas em sentido inverso. Há passageiros que iniciam viagem em Helsínquia (não só finlandeses mas também muitos russos) e esses desfrutarão de um dia em Estocolmo. Interessante para os viajantes dos dois países, assim que o ferry entra em águas internacionais a Duty Free Shop (desproporcionalmente grande em relação às restantes, situa-se num piso distinto do restante comércio, conjuntamente com o restaurante maior e mais acessível) permite a venda tanto de álcool como de tabaco, a preços bem mais convidativos que os praticados nos países entre os quais se circula.

Assim, na vecka sju do ano passado fomos à Finlândia, sem nenhum objetivo em particular além de mudar de ares de forma barata e confortável. Lista curta de atividades a cumprir: piscina e Pantene. Começando pelo Pantene (não me refiro a nada místico, é mesmo de champô e amaciador de cabelo que estou a falar), aqui não há! Tenho um cabelo caprichoso e volumoso, difícil de domesticar e a paciência para o tentar fazer é mínima, é lavar e pentear e se não ficar bom o velho rabo-de-cavalo também é muito adequado. Aprendi já há muitos anos que sem Pantene não consigo fazer nada do cabelo, a não ser nos dias quentes de verão, quando seca ao ar em cinco minutos e a escova se torna menos necessária. Ora o verão na Suécia é curto e húmido... pelo que mesmo considerando uma idiotice estar a desperdiçar o meu espaço de bagagem em champô em vez de ser em Licor Beirão, Pantene é um produto que costumo trazer no fundo da mala de viagem. De vez em quando há uma conhecida cadeia de lojas alemãs a vender esse amaciador, para mim milagroso, por um período limitado de tempo, como se fosse a última inovação em cuidados capilares, ocasião em que aproveito para renovar o stock. Nesse dia em Helsínquia, para não me esquecer de tão fundamental tarefa, até criei um alarme no telemóvel, “champô”. Encontrado um supermercado, por sinal da mesma marca dos acima referidos (mas onde o que eu queria existe sempre e não apenas como produto temporário) foi só entrar, sair com a mochila cheia de frascos de 300 ml e bónus dos bónus, na mão um saquinho de papel com uma dúzia de “Portugalilaiset Pastel De Nata” acabadinhos de sair do forno que se devoraram em cinco minutos.

Depois disso seguimos para a piscina. Estavam zero graus. A piscina é central, fica no porto ao nível do mar, virada para os enormes navios, ao ar livre e descoberta. A água permanentemente aquecida mantém-se a vinte e nove graus. Ao lado há uma outra piscina à temperatura ambiente, o que naquele dia se traduzia por dois graus na água. Os balneários são, obviamente, quentinhos, dispõem de saunas e duche à temperatura que se queira. Depois da meia hora inicial em que nadamos e mergulhamos como se fosse agosto, apesar do frio, começou a crescer a curiosidade sobre a outra piscina, à qual se acedia por uma escada larga, degraus estáveis, corrimão. Fizemos uma primeira tentativa, enrolados nas toalhas, não fomos mais além do que entrar na água gelada até tornozelos. Voltamos, a tiritar, para a piscina boa. Passados uns minutos insisti, desta vez sozinha. Cheguei ao quinto degrau, talvez a meio da coxa. Fugi a correr e fui-me recompor para a sauna. Quando, encalorada, saí cá para fora outra vez vi um sujeito de tronco nu avançar decidido e descontraído até à beira da piscina fria. Mergulhou, atravessou-a a nado e saiu pelo outro lado. Deu uma volta a pé ao recinto e repetiu a proeza quatro ou cinco vezes. Depois foi-se embora. Livra!


Na Suécia não se comemora o Carnaval nem se sabe o que é. Há uma ideia vaga do que acontece no Brasil ou em Veneza mas nada mais. Existe, no entanto, uma distinta tradição associada ao último dia antes do período de jejum que antecede a Páscoa. Ou seja, o dia que para mim se chama Carnaval para os suecos tem outro nome, Semmeldagen. Nesse dia come-se semlor, no plural, pois comem-se muitos, mas se for só um, no singular, diz-se semla. É um pãozinho redondo e leve, a massa leva farinha e leite, uma pitada de açúcar, pode-se misturar um ovo e um cheirinho de manteiga. Infelizmente e apesar da semelhança dos ingredientes nem de perto nem de longe fica parecido com bolos lêvedos. Ainda mais grave que isso é que costuma ser temperado com uma especiaria, o cardamomo, que francamente, quem a comprar que a coma, é daquelas coisas que não me fazem falta. Tem-se então um pão de leite a saber a cardamomo, abre-se ao meio, a parte de baixo barra-se (generosamente, por favor) com pasta de amêndoa, por cima natas batidas à moda sueca, sem açúcar, tapa-se com o outro meio pãozinho, polvilha-se com açúcar em pó e, voilá, temos semla. Sem ser especialmente delicioso, não é contudo de desprezar, é uma tradição que se deixa comer facilmente, até porque aparecem como que por magia no hospital, no dia devido, à hora do fika da tarde. Diz-se que em anos idos o pessoal aproveitava a oportunidade para se empanturrar com calorias doces e gordurosas antes da quaresma. Apenas neste dia. Agora, é como o bolo-rei em setembro, ainda o Natal não chegou e já há semlor no supermercado.

Ora, isto quando cheguei à Suécia, sem saber falar como deve ser e sem ninguém me explicar nada, era dia de comer bolos com creme e pronto. E nem percebi durante os primeiros anos que o dia dos semlor calhava sempre no dia Carnaval. Até que ouvi alguém mais velho referir-se a esse dia com uma terminologia mais antiga, Fetttisdagen, Terça-Feira Gorda. Palavra que afinal até aparece nos anúncios, mas quem não sabe é como quem não vê e eu não tinha dado conta. Finalmente fez-se o clique! Não há Carnaval mas há Terça-feira Gorda, tradições totalmente distintas mas com origem comum!


Há quem odeie o Carnaval e há os que são foliões por natureza. Eu, nem tanto ao mar nem tanto à terra. Sempre fez parte do calendário, chegava sem grande alarido. Se me dessem oportunidade ia mascarada para a escola no último dia de aulas com qualquer coisa decidida de véspera, o mesmo disfarce serviria para Domingo Gordo e Terça-feira de Carnaval, de preferência bem besuntada com o batom da minha mãe, que mais maquilhagem não havia lá em casa. Serpentinas e papelinhos para atirar ao ar gostava de ter tantos quantos me comprassem e já mais velha, quando dispunha de uns poucos escudos para gastar, comprava também uma dúzia de “estalinhos”, uma poeira de pólvora misturada com areia, quantidade ínfima e inofensiva, embrulhada num quadradinho colorido de papel, que se arremessava ao chão com violência, para estalar, trau! Mas chegada a Quarta-feira de Cinzas desligava do Entrudo e não voltava a pensar nisso nem tinha saudades, até ao ano seguinte. Espontaneamente, tenho na memória uns três ou quatro carnavais. Uma vez, teria eu talvez uns três anitos, houve uma festa de Carnaval na Casa do Povo de Pedrógão Grande. Recordo vagamente que toda a gente dançava, havia comida e eu tinha um fatinho de saia rodada vermelha, lenço e avental, iguais aos usados pelas mulheres nos ranchos folclóricos. Na escola primária fui uma vez, contrariada, mascarada de homem (um boné e uns bigodes, estava feito!) mas todas as minhas amiguinhas estavam de bruxa boa, princesa ou dama antiga. No ano seguinte reclamei atempadamente, a minha avó costurou-me uma saia simples mas larga e comprida, elástico a prender a cintura, um tecido de chita florido que por ser alaranjado dificilmente teria outro préstimo. Completei com uma estranha blusa verde da minha mãe, com folhos e bordados brancos, um cesto de verga pendurado no braço e o inevitável lencinho na cabeça, mas amarrado atrás, na nuca, como faziam as minhas avós, nada de atilhos debaixo do queixo como as velhinhas mesmo muito velhinhas. Muito batom nos lábios e bochechas. Nesse dia ia vestida de camponesa rica. A saia até aos pés já me deixava em completa igualdade com as outras meninas e senti-me muito satisfeita. Uma outra vez o meu pai chegou a casa, à noite, com dois pacotes de serpentinas para mim e outros dois para o meu irmão, duas semanas antes do Carnaval. O habitual era que tivessem que durar a época toda, quer as usássemos no primeiro dia ou as fossemos racionando lentamente, não haveria reposição de stock. Parecíamos ter tanta vontade de desenrolar uma que nos autorizaram a fazê-lo, mesmo na sala de estar. Ficámos tão contentes que não se importaram que gastássemos a segunda. E de repente estavam todas desembrulhadas por cima da alcatifa (não só com a aquiescência dos meus pais mas também com a garantia que, numa vez sem exemplo, nos comprariam mais um pacote a cada um para brincar na semana do Carnaval) e o meu irmão e eu pulámos até cair de cansaço, enrolados num emaranhado imenso de frágeis fitas de papel coloridas. Nos anos entre a infância e a idade adulta suponho que alguma vez terei festejado de alguma forma com colegas ou amigas, mas nada que me venha à ideia. Depois, muito anos mais tarde, já médica interna do internato geral, estava a trabalhar em Ponta Delgada no mês do Carnaval e aí sim, festejei outra vez, de forma diferente, conforme os costumes regionais. Creio que foi no ano seguinte àquele em que o Coliseu Micaelense retomou a sua antiga e emblemática tradição dos Bailes de Carnaval, que de forma alguma se relaciona com mascaradas. É um acontecimento formal e elegante, senhoras de vestido de festa, comprido, cavalheiros de fato ou smoking, nada de rapaziada com sapatos desportivos e crianças pequenas ficam em casa. Uma pequena orquestra ao vivo, um grande alarido na imprensa local. Amigos, conhecidos e antigos colegas da faculdade ansiavam pelo evento e diziam-me que eu ia adorar. Bem, foi de facto refinado e sofisticado, uma experiência singular. Mas havia tanta gente que mal se podia dançar, muito menos conversar e uma fulana desastrada e avantajada com uns sapatos cujo salto tinham uma área mínima fez-me com eles um buraco no vestido brilhante cor-de-vinho, ao escorregar num degrau da escadaria. Com o rasgão no vestido terminou o meu entusiasmo pelo baile. Nessa altura ainda a minha máquina fotográfica era de rolo, daqueles que se levavam ao fotógrafo para revelar. Foi a única vez que me aconteceu, mas queimaram-me o filme. Nem uma foto existe desse Carnaval distinto, apenas memórias confusas. 

Carnavais depois desse, lembro-me daquele em que a minha filha se vestiu de Minnie quando tinha três anos, roupita improvisada por mim com bastante sucesso e mais tarde disfarçada de pirata Izzie (de uns desenho animados da altura) quando tinha cinco anos. Nesse mesmo ano, quando fui buscar as crianças ao jardim-de-infância, o meu filho então com dezoito meses vinha mascarado de Pato (tipo) Donald, giríssimo! O seu andar hesitante, marcha de base alargada, própria da idade, adequava-se na perfeição à personagem. Tudo feito pelas educadoras e auxiliares com materiais pouco dispendiosos, esforçando-se tanto quanto podiam para manter a alta qualidade das atividades infantis, divertidas e estimulantes, enquanto o seu local de trabalho afundava mais depressa que o Titanic em direção à já anunciada falência que se concretizaria dois meses depois. E no ano seguinte, já estávamos na Suécia. Não voltámos a gozar o Carnaval...


O Carnaval é, como se sabe, uma festividade móvel. Para se saber a que dia será, há que fazer cálculos, começando pela data da Páscoa. Esta festeja-se no domingo seguinte à primeira lua cheia após o Equinócio de primavera. O Carnaval comemora-se quarenta e sete dias antes. Simples! Entre 5 de fevereiro (como aconteceu por exemplo no ano 2000) e 9 de março (como será em 2038) qualquer data é possível. A Terça-feira Gorda sueca, tal como explicado, não traz consigo férias escolares, essas acompanham a semana sete. Mas mesmo a semana sete pode cair um pouco mais para trás ou mais para a frente, depende do dia de janeiro em que se começa a contagem. No ano passado, por exemplo, foi de 10 a 16 de fevereiro mas este ano é de 15 a 21. E se no meu primeiro fevereiro aqui eu não sabia nada disso, do segundo em diante passei a interrogar-me se aconteceria alguma vez ambas as coisas darem-se em simultâneo. Esperei com expectativa pelo ano em que acontecesse a semana sete coincidir com a semana do Carnaval. Queria ir a Portugal com os miúdos para, ao menos uma vez em idade de se lembrarem mas já de se divertirem, perceberem do que falamos e experimentarem a folia que vêm na televisão. E este ano finalmente as datas coincidem, pela primeira vez! Porém este é o ano em que não há festejos e em que não se vai a lado nenhum até estar tudo vacinado... nem da cidade saímos, quanto mais do país. Já é uma sorte poder sair de casa! Adiem-se os planos para 2024, talvez, por sorte não falta assim tanto tempo para a próxima oportunidade! Que há que aproveitar, pois na sobreposição seguinte, em 2029, a miúda estará na faculdade ou num qualquer ano sabático como au-pair no sul de França e o miúdo, cheira-me, não há-de querer saber do Carnaval para nada!



E como estamos, este ano, a passar a semana sete? Patinagem, ski, escorregar de trenó, passear no gelo. Repetir tudo pela ordem inversa noutro local. E mantenha-se a neve e o frio, porque lama pastosa e quatro graus positivos carregados de humidade não beneficiam ninguém. A única inovação destas férias, sobrepostas à Terça-feira Gorda, foi termos arriscado fazer semlor em casa, em número muito maior do que bocas para as comer, com mais açúcar e menos cardamomo que as do supermercado. Não sobrou nada, pelos vistos boas semlor nunca são de mais. E a seguir desportos de inverno outra vez, que outra coisa não há. E Portugal? Portugal será no verão. Até lá video-chamadas, as fotos dos anos passados e o quadro que o meu pai pintou. Um destes dias o meu filho trouxe um amiguinho da escola para brincar cá em casa. Um miúdo simpático, que apesar de ser alérgico a tudo e mais alguma coisa não é esquisito a comer daquilo que pode e quando eu falo percebe-me logo à primeira. Dei com ele a olhar com curiosidade para o tela que tenho por cima do sofá, na cozinha. Pintada pelo meu pai, encomendada com as palavras, “qualquer coisa sobre o verão”. Não tendo nenhuma pedido mais específico, o artista fez como quis na sua liberdade criativa. Setenta centímetros de altura e um metro de largura. Em pano de fundo uma praia grande, pessoas na areia dourada e guarda-sóis, na água azul com toques brancos de ondas baixas há banhistas e num céu perfeito flutuam dois parapentes. Em primeiro plano uma mesa, toalha de algodão aos quadrados brancos e esverdeados, com silhuetas de pequenos peixes na própria trama do tecido. Sobre a toalha, a dominar totalmente o quadro, um copo de imperial cuja espuma transborda, um prato de sardinhas acabadas de assar e uns óculos de sol, ali largados com descuido. Um pouco mais distante está poisado um copo de vinho tinto (ou será um tango, a minha mistura de verão?) que já fez nódoas na toalha, junto a uma fatia de broa com sardinha, prontas a comer. Há ainda, ao canto, um prato de caracóis pequenitos para petiscar. Pelo lado de fora do tal copo de cerveja cheio até mais não puder, sobe um caracol, vivo, pois claro, provavelmente fugido da panela. Arrasta-se pelo vidro acima tentando chegar nem ele sabe onde. É preciso dar um passo atrás e apreciar o conjunto. É o verão, sem dúvida! E o rapazinho que, calmamente, avaliava a pintura, olhou para mim e perguntou “Achas que alguém ia beber aquela cerveja mesmo com o caracol a passear no copo e a deixar tudo peganhento?” Pois que o garoto ficou sem resposta. Enquanto ele e o meu filho foram fazer outra coisa qualquer, eu fiquei a olhar para toda a cena estival e a pensar nunca mais chega aquele período entre a semana vinte e quatro e a trinta e quatro.

1 comentário:

  1. Boa noite, muito obrigada pela sua escrita e partilha! Sou anestesista em Portugal e, cada vez mais, um local em que se possa crescer profissional e pessoalmente (como na Suécia) me faz mais sentido. Peço desculpa pela iniciativa e ousadia, mas enviei mensagem pelo Messenger. Agradeço desde já toda a atenção e eventual tempo despendido. Desejo-lhe as maiores felicidades.

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