Quando
cheguei à Suécia
era o que eu sabia dizer: “Hej,
hej!” Um olá
informal que não chegava para enganar o interlocutor.
Conseguia, talvez,
contar até dez, agradecer o café e decifrar a indicação
monolingue no hotel, frukost,
pequeno-almoço.
Mais nada. Tinha tentado estudar através de páginas
impressas de sites gratuitos na internet.
Mas a falta de tempo, aliada
a um milhão
de outras coisas para resolver, não me deixou ir mais além. Na
altura não
conhecia o Duolingo (talvez até nem existisse, ainda) com que agora
brinco (em
italiano)
quando não tenho energia para pensar em mais nada.
A primeira chegada à Suécia foi num feriado de fim de maio. Pedi dois dias de férias no hospital. As
folgas existiam, excedentes,
mas não para serem gozadas quando a mim me aprouvesse e menos ainda
aos pares. Ser-me-iam pagam em dinheiro (mas o tempo gasto dos
meus filhos não se pode comprar de volta) uns meses mais tarde,
aquando da rescisão
do contrato. Foram-me concedidos os dois dias, contando que todo o
trabalho que tinha planeado para esse período aparecesse feito na
semana anterior ou posterior. Já conhecia as regras do jogo, não
estranhei. Umas horas de trabalho a mais sem qualquer compensação
nunca fizeram mal a ninguém. Ou estávamos
equivocados?
O
avião
acelerava na pista em Lisboa e a pergunta sobrepunha-se ao ruído
dos motores: “Mas afinal vamos lá fazer o quê?” “Ver...
ouvir
o que têm para nos dizer”.
Desencantada
com a falta de perspetivas
em Portugal tinha começado
a enviar currículos
para o estrangeiro um ano antes. Um pouco para toda a Europa, mas com
foco na Escandinávia. A qualidade de vida apregoada, as regalias (ou
direitos) sociais, a família e
bem-estar acima de
tudo. O Reino Unido era mais próximo e revestia-se
de facilidades, sem
Brexit
no horizonte. Na Bélgica ou na Alemanha pagavam melhor. Mas crianças
livres a brincar na rua e pais com tempo para as ir buscar à escola
ou para as cuidar em
caso de doença
era o que me seduzia. Em Portugal o futuro enquanto “carreira”
parecia-me um buraco negro e a possibilidade de aprender, de ser
melhor, de me desenvolver como pediatra de uma forma que me agradasse
estava-me praticamente vedada. “Se fico deprimo, mas não sei se
consigo ir.” Uma grande viagem faz-se com pequenos passos. Sem
possibilidades de modificar a minha vida laboral em Portugal, não
tinha sequer um currículo
digno desse nome em arquivo. O primeiro passo foi o necessário
esboçar
de duas paginas sobre o meu percurso académico
e profissional. Depois foi ajeita-las em inglês. Aí começaram
as dúvidas.
“O meu inglês não é perfeito. O do meu amigo B. é melhor. Mas
assim vou ter que dar voz ao meus planos… Tornam-se mais
palpáveis...”
Um par de semanas e
tinha na mão
um simpático
CV. Sem mentiras mas com descrições
detalhadas de determinados procedimentos especializados, que tendo
sido realizados por mim autonomamente
de quando em vez, não
faziam de todo parte das rotinas do dia-a-dia. É que o
Neuro-desenvolvimento
da minha pós-graduação
na Católica, incentivada
pelo hospital mas paga
do meu bolso nos meus fins-de-semana livres, não me parecia
grandemente valorizado no estrangeiro, enquanto que a experiência
com recém-nascidos doentes o era. O documento está feito, há que
enviá-lo.
Mas pedem referências, duas até, e agora? Falei com um colega de
Lisboa, cardiologista pediátrico
de renome, pedi sigilo. Mas não
basta, tenho que
indicar também alguém que trabalhe comigo diariamente, que seja
experiente, fale Inglês, mas em quem eu possa confiar, que não me
“denuncie”. Um passinho de cada vez e o meu CV voou pela Europa.
Uns
meses mais tarde chegou mais um e-mail
de uma empresa de recursos humanos sediada em Varsóvia que me
contactara já um par de vezes. Um hospital público
de media dimensão,
numa cidade na Suécia
com nome impronunciável,
precisava de um pediatra com alguma experiência
em Neonatologia e, já agora, de um currículo
atualizado. Consultei
um mapa. Considerando que nunca chegara
a ter nenhuma oferta da Dinamarca, geograficamente não arranjaria
melhor. Atualizem-se os números
do CV, dê-se ênfase
aquilo que desperta interesse no potencial empregador, um
pouco de maquilhagem verbal,
fale-se de crianças,
natureza e vontade de desenvolvimento académico e pessoal. E após
umas semanas o telefone toca, um numero estrangeiro, Polónia,
informa-me o sistema operativo. Fecho-me na casa de banho mais
próxima antes de atender. Tranco a porta. Abro
a água no lavatório. Não
quero que me ouçam.
Sento-me no tampo da sanita. O hospital quer entrevistar-me daí a
três semanas. Podemos marcar o bilhete para Gotemburgo? Depois há
que seguir hora e meia de comboio. Preferes passar a noite em
Gotemburgo e viajar de madrugada ou fazer tudo no mesmo dia a acordar
fresca para a entrevista que será sem falta às oito da manha? E a
taquicárdia
torna-se
dominante, tão
forte que acho que o coração me vai trepar
a garganta e saltar pela boca. Mas o que mais recordo é a náusea.
Uma sensação
de náusea
brutal, que vim mais tarde a saber que não me era exclusiva. Todos
os que decidiram voluntariamente deixar a sua terra para ter vida
noutro lado a sentiram em algum momento. Na Lituânia, na Bulgária,
na Hungria… não interessa onde. As mãos
suam, a voz treme, as sístoles
são
fortes... e a náusea
desce. É só mais um pequeno passo na caminhada, só mais um… não
é o ultimo, não
estamos sequer a meio. “Yes,
you may book the flight, thank you”.
O
hospital enviará alguém para vos levar a conhecer a cidade e depois
então irão
para a pediatria, para a entrevista, dizia o e-mail.
Às oito em ponto. Quinze graus para mim nessa altura era frio.
Trouxe um casaco preto, grosso, sóbrio mas elegante. Calças
de ganga escura, uma
camisa às riscas azuis. Nos pés as minhas confortáveis
e discretas sapatilhas sem marca. Na mochila uns sapatos adequados e
um cinto, para me ajeitar antes de passar pelo crivo que determinaria
se a minha experiência
lusa se
adequaria às crianças
suecas. Uns minutos
antes da hora marcada um sujeito jovem com ar simpático esperava no
átrio do hotel (na realidade creio que ele já lá se encontrava
quando descemos para o tal frukost
meia hora antes). Calças
de ganga, Nike's
pretas, um polo de boa qualidade. Uma voltinha pela cidade, centro,
pista de ski,
miradouro, bairros
agradáveis, vamos
andando que está na hora. Conversa fácil,
inglês mais que fluente. “Que fazes tu no hospital, qual a tua
função?”
(podia ter sido pior, foi uma pergunta aberta) “Ah, eu sou o chefe
do pessoal médico na Pediatria, ou seja se fores contratada, serei o
teu chefe”. Evidentemente as sapatilhas e o cinto não chegaram a
sair da mochila.
Em
Agosto viajámos de carro, sem os miúdos. O carro cheio de tralha, a
caixa do tejadilho com
sapatos e brinquedos. Três dias de condução
intensiva. Filas ao redor de Paris. Indicações
para cidades conhecidas, ali ao lado, mas em nenhuma parámos. Uma
noite no ferry.
As últimas
quatro horas ao volante
já em solo sueco. Uma única vez nos enganámos no caminho, a 90 km
do destino. E logo,
cinco dias de confusão.
Um simpático cavalheiro sueco, como
uma bússola, nos
seus 60 anos, magro, barba branca, óculos
de aros redondos, pago pelo hospital para nos ajudar no processo.
Reuniões,
papéis,
IKEA, além é o supermercado, falta um papel, aqui há lojas com
produtos para o carro e para a casa, reunião
na escola, aqui podemos almoçar
que é bom e barato, IKEA outra vez, não te esqueças
daquele certificado, providenciar eletricidade
e internet,
voar de regresso. Quatro semanas para ver Portugal e arrumar a vida
numa mala. Não
coube tudo, houve que escolher.
Portanto,
quando cheguei à Suécia
era tudo o que eu sabia dizer: “Hej,
hej!”. E sorrir.
O
hospital organizou um curso intensivo de sueco. Três meses pagos a
peso de ouro, constou-nos. Éramos
oito ou nove.
Nós.
Eu tinha negociado na entrevista de Maio a minha não-ida
para a Polónia. Na verdade, não negociei nada, limitei-me a dizer
ao meu futuro chefe que agradecia a entrevista, a viagem, a
oportunidade mas tinha dois filhos pequenos e portanto estava fora
dos meus planos viajar sozinha três meses para Varsóvia e aprender
sueco antes de me mudar de vez para aqui. “We
can do it other way”.
“Fine”.
Para
além de nós, uma enfermeira búlgara
um par de anos mais velha cujo marido é meu colega (e ele sim,
estivera na Polónia durante o verão
e seguiu o processo
de recrutamento até ao fim através da tal empresa com a qual
comecei). Quando chegaram era noite, traziam quatro malas e uma
criança
e entraram num apartamento totalmente vazio. Ela sentou-se no chão
e chorou. Lá para novembro, foram das primeiras pessoas que
convidamos para nossa casa. Eles não falavam inglês e a qualidade
do curso intensivo era tal que nenhum de nós falava ainda
sueco. Jantamos,
bebemos, divertimo-nos, mas não conversámos grande coisa. Ainda
hoje nos rimos desse dia. Há uns meses ensinei o marido a encomendar
produtos de uma mercearia portuguesa on-line. Os after-work
internacionais aqui no
bairro passaram a ter o
sabor da península
de Setúbal.
No
curso estava também o T., professor polaco da nossa idade, falava
diversas línguas, estudara intensivamente antes da viagem. A mulher,
radiologista, estivera em Varsóvia mas abraçara
o filho de dois anos todos os fins de semana. Também não tiveram
apoio direto do hospital nem nenhum cavalheiro sueco lhes explicou,
por exemplo,
que teriam que dar autorização
ao banco para que o ordenado lhes pudesse ser depositado na conta e
que esse processo burocrático
cujo conceito não consigo compreender pode
levar algum tempo.
Assim, viram-se com
um cheque na mão
durante 10 dias, números
elevados, mas que não
conseguiram converter em crédito
de supermercado. Esticaram o que puderam para as salsichas do miúdo
e comeram pão
e iogurtes com arroz (um “lanche” barato e popular na Suécia)
até resolver o problema, viemos depois a saber. Os dois falavam
inglês,
cultos, divertidos. Convidámos-los
para pizza e cerveja, num domingo. Aprendemos nesse dia, enquanto
bebíamos
sumo concentrado, que na Suécia há que planear as idas ao System
Bolaget até à
hora de almoço
de sábado (a venda de álcool
é regulada pelo estado e não havendo limite de quantidade para
comprar – o preço
é o limite – há que saber que só se vende em certos locais até
certas horas). Infelizmente mudaram-se
há tempos para outra
cidade.
No
curso estava ainda um casal da Hungria, ele otorrino e mais velho,
ela enfermeira e mais nova, uma simpatia. Também nos encontrámos
umas vezes mas da mesma forma procuraram novas paisagens após dois
anos.
Havia
ainda uma psicóloga
holandesa (esposa de um ginecologista) e um pediatra holandês, não
relacionados entre si. Ambos continuam na cidade. O pediatra é
sub-especialista em neurologia, com um doutoramento em algo que tem a
ver com cefaleias na infância, é convidado assíduo
em congressos internacionais, como
orador. Ainda hoje tem
dificuldades no sueco.
As
duas professoras do curso (se é que o eram) estavam habituadas a
lecionar
para refugiados desinteressados, na sua maioria não diferenciados.
Não
tinham capacidade pedagógica
nem vontade de a ter. Em três meses falaram apenas sueco, nunca nos
deram um pista, um amparo, em inglês. Monólogos
intermináveis,
sem qualquer feedback
da nossa parte e
nunca se inquietaram.
De gramática pouco percebiam além do básico, “Kolla
på nättet, vai
ver à internet”.
Que rápido e fácil
teria sido de outra forma. Todos nós queríamos
aprender depressa, mas elas não
se esforçaram
para adaptar o seu método
de ensino às nossas necessidades. O que aprendi da língua naqueles
três meses foi aquilo que estudei em casa, orientada pelo livro e
pelas fotocópias
antigas e de má qualidade com que pouco fazíamos
nas aulas. O curso, a mim, serviu-me de base instável, tal como para
o polaco e para o holandês.
Para os restantes não serviu de nada.
A
meio de janeiro comecei a trabalhar. Um par de semanas para me
adaptar e pronto. Completamente limitada pela língua, até os
neurónios
e as sinapses dedicados ao conhecimento médico se recusavam a
colaborar. Os raciocínios complexos não se desenvolviam,
limitava-me a fazer o imprescindível,
a imitar os outros,
menos diferenciados que eu, a perguntar coisas que não
perguntava há mais de 10 anos. A sobreviver. Um dia de cada vez.
“Det kommer,
hás-de conseguir falar”, diziam-nos os suecos para nos animar,
enquanto aqueles que estavam na Suécia há 4 ou 5 anos, o que na
altura espelhava eternidade, acenavam que sim.
Toda
a gente diz que as crianças
aprendem depressa, absorvem a nova língua, fazem amigos e falam sem
dificuldades, logo, logo. Ao fim de quatro meses a minha filha não
falava. Nada. A turma da Förskolaklass
(classe de “antes da escola” ou ano zero, para crianças
de 6 anos) tinha 26 cachopos, onde ela era a única não nascida na
Suécia, coisa rara neste país. Havia, claro, uma mão
cheia de miúdos de
segunda geração
ou de famílias multinacionais. Na escola tinha duas ou três vezes
por semana, da parte da tarde, o apoio de uma specialpedagog
que lhe tentava ensinar qualquer coisa de sueco. Como ela não falava
inglês,
nem a professora
português, serviam-se
de imagens. Nos intervalos, os auxiliares de educação
recorriam por vezes ao Google
translator em
alta-voz para lhe dar instruções
menos óbvias. Como é uma miúda simpática e sociável,
gosta de brincar, foi convidada para todas as festas
de anos desde o início.
Que sorte tivemos! Nem sempre é assim linear. Comprei presentes
caros, grandes, coloridos, para miúdos
que não conhecia, muito mais caros dos que passei a comprar uns anos
depois. Nem que fosse pelos embrulhos
que levava, queria que
ela continuasse a ser convidada. Como é que ela se resolvia durante
as festas não
sei, mas vinha sempre contente. Porém em fevereiro comecei a ficar
preocupada com ela. Afinal nem todas as crianças
aprendem a falar, afligi-me. E eu não sei sequer para mim, não a
consigo ajudar! Ela trazia livros infantis para casa, mas como
transmitir o que não se percebe? Uma
tarde encontrámos
uma conhecida no supermercado. Faltavam-me palavras para explicar
qualquer coisa e a minha filha começou
a falar por mim. Em sueco. Falou, falou, falou. Até hoje! Ainda não
se calou. Afinal as crianças
aprendem, que alívio! Aos 11 anos de idade ainda passou mais tempo
da sua vida em Portugal do que na Suécia, mas ninguém o consegue
adivinhar.
E
o rapazito? Com dois anos e meio mal falava português. Como é que
tu fazes se perderes a chucha na escola? “Nappen!
Nappen!”
E se tiveres cocó na fralda? Os olhos grandes arredondaram-se com a
peculiaridade do interrogatório! “Bajs!
Bajs”.
Desenrasca-se melhor que eu!
Os
progressos linguísticos
no trabalho continuavam extraordinariamente lentos. Tentava ler
protocolos médicos
em sueco, revistas e jornais gratuitos que chegavam a casa,
informações
que vinham da escola, o esforço
era quase inglório. Mas a aprendizagem do idioma não é linear,
faz-se em degraus. E um dia fiquei levemente irritada quando
perguntei aos pais de um doente se ele tinha tido febre e me disseram
que sim. Depois questionei sobre dor de barriga e responderam que
não. E o resto da informação,
aquela que é por habito espontaneamente debitada quando se
entrevista a família? Porque é que não falam mais, que se calam
tão
depressa? Afinal já percebo qualquer coisa, já não me contento com
o básico. Um passinho para a frente. Nesses meses houve dor de
cabeça
ao final do dia, toda a energia esgotada na engrenagem da
comunicação.
E então
comecei a perder o inglês, a bengala de recurso. Um passo para trás…
ou serão
dois para a frente? O inglês só se perde quando o sueco começa
a entrar, explicaram-me os mais experientes. Já sonhas em sueco?
(faltavam ainda uns anos para tal). Quase um ano havia de passar,
desde o meu inicio efetivo
no trabalho, da pratica diária
do sueco, até que eu perdesse o medo do telefone. Todos nós temos
um telefone de serviço
(por vezes até andamos com dois ou três, depende da função
desempenhada nesse
dia), que toca amiúde.
E quando se
atende, tudo o que há
é som. Não
há lábios a mexer, expressão
facial, gestos
acompanhantes. A aversão
ao telefone, as mãos
suadas acompanhantes, a
incapacidade de realizar qualquer outra tarefa que exigisse
concentração
nos minutos seguintes a um curto diálogo acabariam também por
desaparecer, quase de repente. Atualmente não me incomoda falar ao
telefone em sueco mais nem menos do que em português. Ainda assim,
se recebo uma chamada indesejada de um vendedor de qualquer coisa que
não me faz falta, sou menina para falar só com a boca, como se não
tivesse garganta e limitar-me a repetir “Vad
säger du, jag förstår inte,
o que é que estás a dizer, não percebo?” até se cansarem e
desligarem com um “Hej
då, adeus”
frustrado. Há já um ano e tal que voltei a conseguir falar inglês
(a compreensão
nunca se perdeu, só a capacidade de construir uma frase oral
exclusivamente em inglês)
contando que faça
uma desintoxicação
prévia do sueco, quer
dizer, que esteja
várias horas, preferencialmente um dia, a falar apenas português ou
vá lá, espanhol. Não
resulta atender dois
doentes em sueco e depois um em inglês, pareço
idiota, coitada, a doutora não sabe inglês….
A
capacidade de utilizar
o sueco no trabalho, havendo potencial para ser melhorado na forma e
na pronuncia, há muito que é real. Passa-se
de uma fase em que se tem vergonha de pedir para repetir algo que não
se percebeu para outra fase mais produtiva e por vezes insólita em
que solicitamos o recomeço
do dialogo três, quatro, cinco vezes, até tudo acabar numa
gargalhada, porque caramba, estou aqui há cinco anos mas hoje não
percebo uma palavra do que me estás dizer. Aos poucos adquire-se a
capacidade de manter conversas longas sobre outros assuntos que não
sejam trabalho, ainda
que se enfiem umas
palavras noutras línguas pelo meio. Já se consegue ir à oficina e
explicar o que se passa com o carro, mesmo que tenha que se fazer um
desenho. Ou ir a uma loja de bricolage e trazer exatamente o que se
pretendia e que estava na prateleira menos visível,
nem que para isso se tenha que que consultar o omnipresente
translator.
E, top dos tops, consegue-se finalmente refilar no supermercado
quando os preços
estão trocados até
que nos deem
razão!
Mas
nunca li um livro em sueco. Li para os meus filhos, claro, ou
material de trabalho, tem que ser. Continuo a parar na livraria do
supermercado, por vício,
tal como fazia em Portugal. Vejo as capas, leio o resumo, folheio e
volto a poisar. Tenho alguns livros em casa, até já tentei começar
a ler (pelo menos dois!), mas não dá. A energia e o tempo que
despendo
para ler uma página faz com que não queira
avançar.
Compreendo o que lá está, mas cansa em vez de dar prazer. Há dois
anos li em quatro semanas os três primeiros volumes da Elena
Ferrante. O quarto volume, não estando já de férias, levou outras
três semanas a completar. Ler em português é conduzir no
autoestrada numa tarde de sol; em sueco é avançar
num caminho esburacado e com curvas numa noite de chuva. Costumo ir
com os meus filhos à biblioteca, trazem 4 ou 5 livros cada um. E
pergunta o rapazito: “E tu mãe,
porque é que tu não trazes nada para tu leres, para ti?” Com o ar
mais sério que consigo
respondo:
“Não
sei ler, meu querido, não sabes que a mamã não aprendeu a ler?”
Cara de dúvida, sobrolho franzido: “Não…
tu andaste na universidade, tu sabes mesmo, mesmo, ler, não me
enganas. Não trazes porque não queres!”. Muito assertivo, este
meu filho.
Estive
hoje num curso em Gotemburgo. Detesto a viagem de mais de hora e meia
de comboio. No geral é um meio de transporte que desaprecio, apesar
das duas óbvias vantagens - ser não poluente e em muitos casos
menos moroso que o trajeto
rodoviário. Enjoo com facilidade (nos rápidos então é um
pesadelo, não tenho opção senão sentar-me muito direita, olhar
rigidamente em frente, respirar e
esperar que passe depressa),
sinto-me à chegada desproporcionalmente
cansada em relação ao esforço efetivo.
Um bom livro costuma ajudar, mas aquele que estou a ler neste momento
não é exatamente dos mais comerciais, precisa de tempo entre os
capítulos para interiorizar a história, para a sentir mais perto,
pelo que o deixei conscientemente em casa. Por outro lado a
experiência que tenho com este trajeto
específico é penosa. Peregrinações a cursos de formação muito
especializados na área da gastroenterologia, onde para além de ser
a única pediatra (“a-ah,
intressant”
diziam eles sem conter o espanto) era a única que não falava um
sueco nativo. Nem correto. Aliás, na altura estava cá há dois anos
e pouco, o meu alcance comunicativo não era o de hoje. O input
funcionou, aprendi, percebi, mas o output...
trabalhos de grupo, intervenções durante as conferências, deixaram
a desejar. Como cheguei a dizer por essa altura mas noutro contexto,
não confundam dificuldades de linguagem num idioma estrangeiro com
dificuldades cognitivas! A segunda má experiência com esta linha
férrea é ainda muito recente. Um suposto período de aprendizagem
num hospital universitário, do qual me desencantei logo ao quinto
dia. Exigia
o esforço de sair de casa pelas 5h30m
da manhã, voltando a entrar treze
ou catorze horas
depois. Na
ausência da ansiada e prometida componente formativa e na presença
da não disfarçada satisfação por haver mais um par de mãos a
trabalhar, não
houve agora
barreiras linguísticas a impedirem-me de expor claramente a minha
opinião sobre o assunto, mas como a efetividade da comunicação não
depende exclusivamente da eficácia do meu discurso mas também da
capacidade recetiva
do interlocutor, peguei nas minhas coisinhas e voltei para o meu
hospital umas semanas antes do previsto. Com vontade de não voltar a
andar de comboio nem de ir a mais curso nenhum.
Só
que a konferens
de hoje prometia ser boa. Roupa escura para não destoar, bijuteria
elegante, cabelo à
solta
(estão 5 ou 6 graus, faz-me confusão o gorro que todos usam abaixo
dos 10 ou 11, só o ponho quando o frio me morde as orelhas), caderno
para apontamentos e vamos embora. Miúdos na escola as 7h10, beijoca
à mamã e despachem-se
para o pequeno almoço, carro estacionado nas ruas gratuitas a dez
minutos da estação, que deve ser o único exercício que vou fazer
hoje, hora e tal de agonia chocalhada, Gotemburgo. A cidade já está
iluminada para o Natal e esse brilho nas escuras 9 horas da manhã de
um dia nublado de Novembro, fazem com que a Drottningstorget
(“Praça da Rainha”, em frente à estação central) pareça
acolhedora como nunca a senti. O hotel é mesmo ali, paredes
exteriores austeras e cinzentas hoje reluzem
em tons de festa, convidativo. Entrei sem hesitar, não precisei de
ensaiar a frase para perguntar para onde ir enquanto admirava o amplo
espaço que já desconfiava ser luxuoso, mas ainda assim me
surpreendeu. O curso de facto foi muito interessante. Os apontamentos
que tirei estão, como vem acontecendo desde há uns meses, numa
mistura de português e sueco com derivações gramaticais
improváveis só compreendidas por quem falar as duas línguas. E ao
sentar-me no comboio de volta a casa dei-me conta que fui das que
mais falei, perguntei, opinei. Nada mal, afinal, após cinco anos!
Em
linhas gerais, é está a história que gostaria de contar a quem me
pergunta como é que aos 35 anos aprendi uma língua
do zero.
Geralmente
falta-me o tempo para escrever, mas não a vontade. Por vezes há
ideias que flutuam à minha volta a pedir para serem transpostas para
o papel, o que sucedeu nas últimas semanas. Mas, de todo, o assunto
não era este. Acontece que neste sábado assisti a um “evento
literário” organizado por uma senhora brasileira que vive na mesma
cidade que eu. A mensagem no grupo de WhatsApp
da comunidade brasileira da cidade (dúzia e meia de cidadãs, um
cidadão e eu como “membro infiltrado”) informava sobre a
apresentação de um livro em português, escrito por uma carioca
residente em Estocolmo. Fui, pelo livro. E porque queria falar um
pouco na minha língua (mesmo que tenha que controlar a velocidade do
discurso e abrir um pouco a pronúncia) e havia a promessa
maravilhosa de coxinha, empada e bolo. Apresentei-me com curiosidade.
Quando Ilana Eleá, a autora, depois de se apresentar, leu os
primeiros parágrafos da sua narrativa, percebi que só por esses
minutos, por esse impacto inicial, já tinha valido a pena ir. A
minha história é distinta da dela, tal como é distinta da das
outras pessoas presentes, cada um tem o seu percurso único. Mas ela
usava (e usa) o português a nível académico, com excelência. E
agora tem que falar sueco. Num plano mais empírico, também eu
falava (e falo) e escrevia (e escrevo) bem, tinha (e tenho)
consciência do meu bom domínio sobre a minha língua, com orgulho.
Então,
o que eu senti pela primeira vez em cinco anos, foi a validação
do meu registo de
dificuldade e
frustração
com o idioma. Obrigada, Ilana!
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