sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Hej! (Olá, em sueco)




Quando cheguei à Suécia era o que eu sabia dizer: “Hej, hej!” Um olá informal que não chegava para enganar o interlocutor. Conseguia, talvez, contar até dez, agradecer o café e decifrar a indicação monolingue no hotel, frukost, pequeno-almoço. Mais nada. Tinha tentado estudar através de páginas impressas de sites gratuitos na internet. Mas a falta de tempo, aliada a um milhão de outras coisas para resolver, não me deixou ir mais além. Na altura não conhecia o Duolingo (talvez até nem existisse, ainda) com que agora brinco (em italiano) quando não tenho energia para pensar em mais nada.


A primeira chegada à Suécia foi num feriado de fim de maio. Pedi dois dias de férias no hospital. As folgas existiam, excedentes, mas não para serem gozadas quando a mim me aprouvesse e menos ainda aos pares. Ser-me-iam pagam em dinheiro (mas o tempo gasto dos meus filhos não se pode comprar de volta) uns meses mais tarde, aquando da rescisão do contrato. Foram-me concedidos os dois dias, contando que todo o trabalho que tinha planeado para esse período aparecesse feito na semana anterior ou posterior. Já conhecia as regras do jogo, não estranhei. Umas horas de trabalho a mais sem qualquer compensação nunca fizeram mal a ninguém. Ou estávamos equivocados?
O avião acelerava na pista em Lisboa e a pergunta sobrepunha-se ao ruído dos motores: “Mas afinal vamos lá fazer o quê?” “Ver... ouvir o que têm para nos dizer”.
Desencantada com a falta de perspetivas em Portugal tinha começado a enviar currículos para o estrangeiro um ano antes. Um pouco para toda a Europa, mas com foco na Escandinávia. A qualidade de vida apregoada, as regalias (ou direitos) sociais, a família e bem-estar acima de tudo. O Reino Unido era mais próximo e revestia-se de facilidades, sem Brexit no horizonte. Na Bélgica ou na Alemanha pagavam melhor. Mas crianças livres a brincar na rua e pais com tempo para as ir buscar à escola ou para as cuidar em caso de doença era o que me seduzia. Em Portugal o futuro enquanto “carreira” parecia-me um buraco negro e a possibilidade de aprender, de ser melhor, de me desenvolver como pediatra de uma forma que me agradasse estava-me praticamente vedada. “Se fico deprimo, mas não sei se consigo ir.” Uma grande viagem faz-se com pequenos passos. Sem possibilidades de modificar a minha vida laboral em Portugal, não tinha sequer um currículo digno desse nome em arquivo. O primeiro passo foi o necessário esboçar de duas paginas sobre o meu percurso académico e profissional. Depois foi ajeita-las em inglês. Aí começaram as dúvidas. “O meu inglês não é perfeito. O do meu amigo B. é melhor. Mas assim vou ter que dar voz ao meus planos… Tornam-se mais palpáveis...” Um par de semanas e tinha na mão um simpático CV. Sem mentiras mas com descrições detalhadas de determinados procedimentos especializados, que tendo sido realizados por mim autonomamente de quando em vez, não faziam de todo parte das rotinas do dia-a-dia. É que o Neuro-desenvolvimento da minha pós-graduação na Católica, incentivada pelo hospital mas paga do meu bolso nos meus fins-de-semana livres, não me parecia grandemente valorizado no estrangeiro, enquanto que a experiência com recém-nascidos doentes o era. O documento está feito, há que enviá-lo. Mas pedem referências, duas até, e agora? Falei com um colega de Lisboa, cardiologista pediátrico de renome, pedi sigilo. Mas não basta, tenho que indicar também alguém que trabalhe comigo diariamente, que seja experiente, fale Inglês, mas em quem eu possa confiar, que não me “denuncie”. Um passinho de cada vez e o meu CV voou pela Europa.
Uns meses mais tarde chegou mais um e-mail de uma empresa de recursos humanos sediada em Varsóvia que me contactara já um par de vezes. Um hospital público de media dimensão, numa cidade na Suécia com nome impronunciável, precisava de um pediatra com alguma experiência em Neonatologia e, já agora, de um currículo atualizado. Consultei um mapa. Considerando que nunca chegara a ter nenhuma oferta da Dinamarca, geograficamente não arranjaria melhor. Atualizem-se os números do CV, dê-se ênfase aquilo que desperta interesse no potencial empregador, um pouco de maquilhagem verbal, fale-se de crianças, natureza e vontade de desenvolvimento académico e pessoal. E após umas semanas o telefone toca, um numero estrangeiro, Polónia, informa-me o sistema operativo. Fecho-me na casa de banho mais próxima antes de atender. Tranco a porta. Abro a água no lavatório. Não quero que me ouçam. Sento-me no tampo da sanita. O hospital quer entrevistar-me daí a três semanas. Podemos marcar o bilhete para Gotemburgo? Depois há que seguir hora e meia de comboio. Preferes passar a noite em Gotemburgo e viajar de madrugada ou fazer tudo no mesmo dia a acordar fresca para a entrevista que será sem falta às oito da manha? E a taquicárdia torna-se dominante, tão forte que acho que o coração me vai trepar a garganta e saltar pela boca. Mas o que mais recordo é a náusea. Uma sensação de náusea brutal, que vim mais tarde a saber que não me era exclusiva. Todos os que decidiram voluntariamente deixar a sua terra para ter vida noutro lado a sentiram em algum momento. Na Lituânia, na Bulgária, na Hungria… não interessa onde. As mãos suam, a voz treme, as sístoles são fortes... e a náusea desce. É só mais um pequeno passo na caminhada, só mais um… não é o ultimo, não estamos sequer a meio. “Yes, you may book the flight, thank you”.
O hospital enviará alguém para vos levar a conhecer a cidade e depois então irão para a pediatria, para a entrevista, dizia o e-mail. Às oito em ponto. Quinze graus para mim nessa altura era frio. Trouxe um casaco preto, grosso, sóbrio mas elegante. Calças de ganga escura, uma camisa às riscas azuis. Nos pés as minhas confortáveis e discretas sapatilhas sem marca. Na mochila uns sapatos adequados e um cinto, para me ajeitar antes de passar pelo crivo que determinaria se a minha experiência lusa se adequaria às crianças suecas. Uns minutos antes da hora marcada um sujeito jovem com ar simpático esperava no átrio do hotel (na realidade creio que ele já lá se encontrava quando descemos para o tal frukost meia hora antes). Calças de ganga, Nike's pretas, um polo de boa qualidade. Uma voltinha pela cidade, centro, pista de ski, miradouro, bairros agradáveis, vamos andando que está na hora. Conversa fácil, inglês mais que fluente. “Que fazes tu no hospital, qual a tua função?” (podia ter sido pior, foi uma pergunta aberta) “Ah, eu sou o chefe do pessoal médico na Pediatria, ou seja se fores contratada, serei o teu chefe”. Evidentemente as sapatilhas e o cinto não chegaram a sair da mochila.
Em Agosto viajámos de carro, sem os miúdos. O carro cheio de tralha, a caixa do tejadilho com sapatos e brinquedos. Três dias de condução intensiva. Filas ao redor de Paris. Indicações para cidades conhecidas, ali ao lado, mas em nenhuma parámos. Uma noite no ferry. As últimas quatro horas ao volante já em solo sueco. Uma única vez nos enganámos no caminho, a 90 km do destino. E logo, cinco dias de confusão. Um simpático cavalheiro sueco, como uma bússola, nos seus 60 anos, magro, barba branca, óculos de aros redondos, pago pelo hospital para nos ajudar no processo. Reuniões, papéis, IKEA, além é o supermercado, falta um papel, aqui há lojas com produtos para o carro e para a casa, reunião na escola, aqui podemos almoçar que é bom e barato, IKEA outra vez, não te esqueças daquele certificado, providenciar eletricidade e internet, voar de regresso. Quatro semanas para ver Portugal e arrumar a vida numa mala. Não coube tudo, houve que escolher.

Portanto, quando cheguei à Suécia era tudo o que eu sabia dizer: “Hej, hej!”. E sorrir.
O hospital organizou um curso intensivo de sueco. Três meses pagos a peso de ouro, constou-nos. Éramos oito ou nove.
Nós. Eu tinha negociado na entrevista de Maio a minha não-ida para a Polónia. Na verdade, não negociei nada, limitei-me a dizer ao meu futuro chefe que agradecia a entrevista, a viagem, a oportunidade mas tinha dois filhos pequenos e portanto estava fora dos meus planos viajar sozinha três meses para Varsóvia e aprender sueco antes de me mudar de vez para aqui. “We can do it other way”. “Fine”.
Para além de nós, uma enfermeira búlgara um par de anos mais velha cujo marido é meu colega (e ele sim, estivera na Polónia durante o verão e seguiu o processo de recrutamento até ao fim através da tal empresa com a qual comecei). Quando chegaram era noite, traziam quatro malas e uma criança e entraram num apartamento totalmente vazio. Ela sentou-se no chão e chorou. Lá para novembro, foram das primeiras pessoas que convidamos para nossa casa. Eles não falavam inglês e a qualidade do curso intensivo era tal que nenhum de nós falava ainda sueco. Jantamos, bebemos, divertimo-nos, mas não conversámos grande coisa. Ainda hoje nos rimos desse dia. Há uns meses ensinei o marido a encomendar produtos de uma mercearia portuguesa on-line. Os after-work internacionais aqui no bairro passaram a ter o sabor da península de Setúbal.
No curso estava também o T., professor polaco da nossa idade, falava diversas línguas, estudara intensivamente antes da viagem. A mulher, radiologista, estivera em Varsóvia mas abraçara o filho de dois anos todos os fins de semana. Também não tiveram apoio direto do hospital nem nenhum cavalheiro sueco lhes explicou, por exemplo, que teriam que dar autorização ao banco para que o ordenado lhes pudesse ser depositado na conta e que esse processo burocrático cujo conceito não consigo compreender pode levar algum tempo. Assim, viram-se com um cheque na mão durante 10 dias, números elevados, mas que não conseguiram converter em crédito de supermercado. Esticaram o que puderam para as salsichas do miúdo e comeram pão e iogurtes com arroz (um “lanche” barato e popular na Suécia) até resolver o problema, viemos depois a saber. Os dois falavam inglês, cultos, divertidos. Convidámos-los para pizza e cerveja, num domingo. Aprendemos nesse dia, enquanto bebíamos sumo concentrado, que na Suécia há que planear as idas ao System Bolaget até à hora de almoço de sábado (a venda de álcool é regulada pelo estado e não havendo limite de quantidade para comprar – o preço é o limite – há que saber que só se vende em certos locais até certas horas). Infelizmente mudaram-se há tempos para outra cidade.
No curso estava ainda um casal da Hungria, ele otorrino e mais velho, ela enfermeira e mais nova, uma simpatia. Também nos encontrámos umas vezes mas da mesma forma procuraram novas paisagens após dois anos.
Havia ainda uma psicóloga holandesa (esposa de um ginecologista) e um pediatra holandês, não relacionados entre si. Ambos continuam na cidade. O pediatra é sub-especialista em neurologia, com um doutoramento em algo que tem a ver com cefaleias na infância, é convidado assíduo em congressos internacionais, como orador. Ainda hoje tem dificuldades no sueco.
As duas professoras do curso (se é que o eram) estavam habituadas a lecionar para refugiados desinteressados, na sua maioria não diferenciados. Não tinham capacidade pedagógica nem vontade de a ter. Em três meses falaram apenas sueco, nunca nos deram um pista, um amparo, em inglês. Monólogos intermináveis, sem qualquer feedback da nossa parte e nunca se inquietaram. De gramática pouco percebiam além do básico, “Kolla på nättet, vai ver à internet”. Que rápido e fácil teria sido de outra forma. Todos nós queríamos aprender depressa, mas elas não se esforçaram para adaptar o seu método de ensino às nossas necessidades. O que aprendi da língua naqueles três meses foi aquilo que estudei em casa, orientada pelo livro e pelas fotocópias antigas e de má qualidade com que pouco fazíamos nas aulas. O curso, a mim, serviu-me de base instável, tal como para o polaco e para o holandês. Para os restantes não serviu de nada.

A meio de janeiro comecei a trabalhar. Um par de semanas para me adaptar e pronto. Completamente limitada pela língua, até os neurónios e as sinapses dedicados ao conhecimento médico se recusavam a colaborar. Os raciocínios complexos não se desenvolviam, limitava-me a fazer o imprescindível, a imitar os outros, menos diferenciados que eu, a perguntar coisas que não perguntava há mais de 10 anos. A sobreviver. Um dia de cada vez. “Det kommer, hás-de conseguir falar”, diziam-nos os suecos para nos animar, enquanto aqueles que estavam na Suécia há 4 ou 5 anos, o que na altura espelhava eternidade, acenavam que sim.
Toda a gente diz que as crianças aprendem depressa, absorvem a nova língua, fazem amigos e falam sem dificuldades, logo, logo. Ao fim de quatro meses a minha filha não falava. Nada. A turma da Förskolaklass (classe de “antes da escola” ou ano zero, para crianças de 6 anos) tinha 26 cachopos, onde ela era a única não nascida na Suécia, coisa rara neste país. Havia, claro, uma mão cheia de miúdos de segunda geração ou de famílias multinacionais. Na escola tinha duas ou três vezes por semana, da parte da tarde, o apoio de uma specialpedagog que lhe tentava ensinar qualquer coisa de sueco. Como ela não falava inglês, nem a professora português, serviam-se de imagens. Nos intervalos, os auxiliares de educação recorriam por vezes ao Google translator em alta-voz para lhe dar instruções menos óbvias. Como é uma miúda simpática e sociável, gosta de brincar, foi convidada para todas as festas de anos desde o início. Que sorte tivemos! Nem sempre é assim linear. Comprei presentes caros, grandes, coloridos, para miúdos que não conhecia, muito mais caros dos que passei a comprar uns anos depois. Nem que fosse pelos embrulhos que levava, queria que ela continuasse a ser convidada. Como é que ela se resolvia durante as festas não sei, mas vinha sempre contente. Porém em fevereiro comecei a ficar preocupada com ela. Afinal nem todas as crianças aprendem a falar, afligi-me. E eu não sei sequer para mim, não a consigo ajudar! Ela trazia livros infantis para casa, mas como transmitir o que não se percebe? Uma tarde encontrámos uma conhecida no supermercado. Faltavam-me palavras para explicar qualquer coisa e a minha filha começou a falar por mim. Em sueco. Falou, falou, falou. Até hoje! Ainda não se calou. Afinal as crianças aprendem, que alívio! Aos 11 anos de idade ainda passou mais tempo da sua vida em Portugal do que na Suécia, mas ninguém o consegue adivinhar.
E o rapazito? Com dois anos e meio mal falava português. Como é que tu fazes se perderes a chucha na escola? “Nappen! Nappen!” E se tiveres cocó na fralda? Os olhos grandes arredondaram-se com a peculiaridade do interrogatório! “Bajs! Bajs”. Desenrasca-se melhor que eu!


Os progressos linguísticos no trabalho continuavam extraordinariamente lentos. Tentava ler protocolos médicos em sueco, revistas e jornais gratuitos que chegavam a casa, informações que vinham da escola, o esforço era quase inglório. Mas a aprendizagem do idioma não é linear, faz-se em degraus. E um dia fiquei levemente irritada quando perguntei aos pais de um doente se ele tinha tido febre e me disseram que sim. Depois questionei sobre dor de barriga e responderam que não. E o resto da informação, aquela que é por habito espontaneamente debitada quando se entrevista a família? Porque é que não falam mais, que se calam tão depressa? Afinal já percebo qualquer coisa, já não me contento com o básico. Um passinho para a frente. Nesses meses houve dor de cabeça ao final do dia, toda a energia esgotada na engrenagem da comunicação. E então comecei a perder o inglês, a bengala de recurso. Um passo para trás… ou serão dois para a frente? O inglês só se perde quando o sueco começa a entrar, explicaram-me os mais experientes. Já sonhas em sueco? (faltavam ainda uns anos para tal). Quase um ano havia de passar, desde o meu inicio efetivo no trabalho, da pratica diária do sueco, até que eu perdesse o medo do telefone. Todos nós temos um telefone de serviço (por vezes até andamos com dois ou três, depende da função desempenhada nesse dia), que toca amiúde. E quando se atende, tudo o que há é som. Não há lábios a mexer, expressão facial, gestos acompanhantes. A aversão ao telefone, as mãos suadas acompanhantes, a incapacidade de realizar qualquer outra tarefa que exigisse concentração nos minutos seguintes a um curto diálogo acabariam também por desaparecer, quase de repente. Atualmente não me incomoda falar ao telefone em sueco mais nem menos do que em português. Ainda assim, se recebo uma chamada indesejada de um vendedor de qualquer coisa que não me faz falta, sou menina para falar só com a boca, como se não tivesse garganta e limitar-me a repetir “Vad säger du, jag förstår inte, o que é que estás a dizer, não percebo?” até se cansarem e desligarem com um “Hej då, adeus” frustrado. Há já um ano e tal que voltei a conseguir falar inglês (a compreensão nunca se perdeu, só a capacidade de construir uma frase oral exclusivamente em inglês) contando que faça uma desintoxicação prévia do sueco, quer dizer, que esteja várias horas, preferencialmente um dia, a falar apenas português ou vá lá, espanhol. Não resulta atender dois doentes em sueco e depois um em inglês, pareço idiota, coitada, a doutora não sabe inglês….
A capacidade de utilizar o sueco no trabalho, havendo potencial para ser melhorado na forma e na pronuncia, há muito que é real. Passa-se de uma fase em que se tem vergonha de pedir para repetir algo que não se percebeu para outra fase mais produtiva e por vezes insólita em que solicitamos o recomeço do dialogo três, quatro, cinco vezes, até tudo acabar numa gargalhada, porque caramba, estou aqui há cinco anos mas hoje não percebo uma palavra do que me estás dizer. Aos poucos adquire-se a capacidade de manter conversas longas sobre outros assuntos que não sejam trabalho, ainda que se enfiem umas palavras noutras línguas pelo meio. Já se consegue ir à oficina e explicar o que se passa com o carro, mesmo que tenha que se fazer um desenho. Ou ir a uma loja de bricolage e trazer exatamente o que se pretendia e que estava na prateleira menos visível, nem que para isso se tenha que que consultar o omnipresente translator. E, top dos tops, consegue-se finalmente refilar no supermercado quando os preços estão trocados até que nos deem razão!
Mas nunca li um livro em sueco. Li para os meus filhos, claro, ou material de trabalho, tem que ser. Continuo a parar na livraria do supermercado, por vício, tal como fazia em Portugal. Vejo as capas, leio o resumo, folheio e volto a poisar. Tenho alguns livros em casa, até já tentei começar a ler (pelo menos dois!), mas não dá. A energia e o tempo que despendo para ler uma página faz com que não queira avançar. Compreendo o que lá está, mas cansa em vez de dar prazer. Há dois anos li em quatro semanas os três primeiros volumes da Elena Ferrante. O quarto volume, não estando já de férias, levou outras três semanas a completar. Ler em português é conduzir no autoestrada numa tarde de sol; em sueco é avançar num caminho esburacado e com curvas numa noite de chuva. Costumo ir com os meus filhos à biblioteca, trazem 4 ou 5 livros cada um. E pergunta o rapazito: “E tu mãe, porque é que tu não trazes nada para tu leres, para ti?” Com o ar mais sério que consigo respondo: “Não sei ler, meu querido, não sabes que a mamã não aprendeu a ler?” Cara de dúvida, sobrolho franzido: “Não… tu andaste na universidade, tu sabes mesmo, mesmo, ler, não me enganas. Não trazes porque não queres!”. Muito assertivo, este meu filho.

Estive hoje num curso em Gotemburgo. Detesto a viagem de mais de hora e meia de comboio. No geral é um meio de transporte que desaprecio, apesar das duas óbvias vantagens - ser não poluente e em muitos casos menos moroso que o trajeto rodoviário. Enjoo com facilidade (nos rápidos então é um pesadelo, não tenho opção senão sentar-me muito direita, olhar rigidamente em frente, respirar e esperar que passe depressa), sinto-me à chegada desproporcionalmente cansada em relação ao esforço efetivo. Um bom livro costuma ajudar, mas aquele que estou a ler neste momento não é exatamente dos mais comerciais, precisa de tempo entre os capítulos para interiorizar a história, para a sentir mais perto, pelo que o deixei conscientemente em casa. Por outro lado a experiência que tenho com este trajeto específico é penosa. Peregrinações a cursos de formação muito especializados na área da gastroenterologia, onde para além de ser a única pediatra (“a-ah, intressant” diziam eles sem conter o espanto) era a única que não falava um sueco nativo. Nem correto. Aliás, na altura estava cá há dois anos e pouco, o meu alcance comunicativo não era o de hoje. O input funcionou, aprendi, percebi, mas o output... trabalhos de grupo, intervenções durante as conferências, deixaram a desejar. Como cheguei a dizer por essa altura mas noutro contexto, não confundam dificuldades de linguagem num idioma estrangeiro com dificuldades cognitivas! A segunda má experiência com esta linha férrea é ainda muito recente. Um suposto período de aprendizagem num hospital universitário, do qual me desencantei logo ao quinto dia. Exigia o esforço de sair de casa pelas 5h30m da manhã, voltando a entrar treze ou catorze horas depois. Na ausência da ansiada e prometida componente formativa e na presença da não disfarçada satisfação por haver mais um par de mãos a trabalhar, não houve agora barreiras linguísticas a impedirem-me de expor claramente a minha opinião sobre o assunto, mas como a efetividade da comunicação não depende exclusivamente da eficácia do meu discurso mas também da capacidade recetiva do interlocutor, peguei nas minhas coisinhas e voltei para o meu hospital umas semanas antes do previsto. Com vontade de não voltar a andar de comboio nem de ir a mais curso nenhum.
Só que a konferens de hoje prometia ser boa. Roupa escura para não destoar, bijuteria elegante, cabelo à solta (estão 5 ou 6 graus, faz-me confusão o gorro que todos usam abaixo dos 10 ou 11, só o ponho quando o frio me morde as orelhas), caderno para apontamentos e vamos embora. Miúdos na escola as 7h10, beijoca à mamã e despachem-se para o pequeno almoço, carro estacionado nas ruas gratuitas a dez minutos da estação, que deve ser o único exercício que vou fazer hoje, hora e tal de agonia chocalhada, Gotemburgo. A cidade já está iluminada para o Natal e esse brilho nas escuras 9 horas da manhã de um dia nublado de Novembro, fazem com que a Drottningstorget (“Praça da Rainha”, em frente à estação central) pareça acolhedora como nunca a senti. O hotel é mesmo ali, paredes exteriores austeras e cinzentas hoje reluzem em tons de festa, convidativo. Entrei sem hesitar, não precisei de ensaiar a frase para perguntar para onde ir enquanto admirava o amplo espaço que já desconfiava ser luxuoso, mas ainda assim me surpreendeu. O curso de facto foi muito interessante. Os apontamentos que tirei estão, como vem acontecendo desde há uns meses, numa mistura de português e sueco com derivações gramaticais improváveis só compreendidas por quem falar as duas línguas. E ao sentar-me no comboio de volta a casa dei-me conta que fui das que mais falei, perguntei, opinei. Nada mal, afinal, após cinco anos!

Em linhas gerais, é está a história que gostaria de contar a quem me pergunta como é que aos 35 anos aprendi uma língua do zero.

Geralmente falta-me o tempo para escrever, mas não a vontade. Por vezes há ideias que flutuam à minha volta a pedir para serem transpostas para o papel, o que sucedeu nas últimas semanas. Mas, de todo, o assunto não era este. Acontece que neste sábado assisti a um “evento literário” organizado por uma senhora brasileira que vive na mesma cidade que eu. A mensagem no grupo de WhatsApp da comunidade brasileira da cidade (dúzia e meia de cidadãs, um cidadão e eu como “membro infiltrado”) informava sobre a apresentação de um livro em português, escrito por uma carioca residente em Estocolmo. Fui, pelo livro. E porque queria falar um pouco na minha língua (mesmo que tenha que controlar a velocidade do discurso e abrir um pouco a pronúncia) e havia a promessa maravilhosa de coxinha, empada e bolo. Apresentei-me com curiosidade. Quando Ilana Eleá, a autora, depois de se apresentar, leu os primeiros parágrafos da sua narrativa, percebi que só por esses minutos, por esse impacto inicial, já tinha valido a pena ir. A minha história é distinta da dela, tal como é distinta da das outras pessoas presentes, cada um tem o seu percurso único. Mas ela usava (e usa) o português a nível académico, com excelência. E agora tem que falar sueco. Num plano mais empírico, também eu falava (e falo) e escrevia (e escrevo) bem, tinha (e tenho) consciência do meu bom domínio sobre a minha língua, com orgulho. Então, o que eu senti pela primeira vez em cinco anos, foi a validação do meu registo de dificuldade e frustração com o idioma. Obrigada, Ilana!