Parte 1 - Em janeiro não é verão
Eu estava de folga, mas os miúdos tinham aulas. Por isso levantei-me à hora habitual, tomei o primeiro café enquanto eles comiam, vesti-me e fui levá-los à escola. O termómetro do carro marcava zero graus na garagem, que não dispõe de aquecimento. Nos quatro ou cinco minutos que leva a fazer o percurso de pouco mais de mil e novecentos metros até à escola (fossem dois mil metros e eles teriam direito a usar o autocarro escolar até ao terceiro ano ou a ter passe gratuito para os autocarros da cidade entre o quarto e o sexto ano) a temperatura que o visor exibiu caiu rápida, contínua e drasticamente até aos menos doze. E enquanto eu cumpria a minha rotina dos dias de folga (escola, supermercado, garagem outra vez) ainda desceu mais um grauzito. Ao sair do carro, carregava sacos de compras e tentei verificar a caixa de correio, nem pus as luvas. Nesse curtíssimo trajecto senti que me gelavam as mãos, que perdiam a destreza e a sensibilidade. Entrei em casa, libertei-me das camadas exteriores de roupa e sentei-me para o segundo café do dia, aquecendo as mãos na chávena. Até mesmo a sala me pareceu fria. Verifiquei o pequeno aparelhómetro que tenho (tal como todos os outros residentes na Suécia que eu conheço) junto a uma janela, que mede a temperatura dentro de casa e, através de um fio fino que sai pelo caixilho sem a impedir de trancar adequadamente, a mede também lá fora. Pois, não estava errada, lá fora nos menos onze mas cá dentro a temperatura tinha caído para os dezassete graus, apesar do ar condicionado estar regulado para os vinte e três. Costumamos manter a casa nuns confortáveis vinte e um, vinte e dois, mas o equipamento ainda não tinha conseguido contrariar a queda persistente da temperatura, que se tinha operado em menos de vinte e quatro horas. Para além do ar condicionado a casa está evidentemente, como todas neste país, equipada com um sistema de aquecimento por radiadores, mas como na zona onde moramos ainda não chegou o prático e economicamente vantajoso fjärrvärme (sistema de distribuição de água quente desde uma central, para aquecimento das casas, através de canalização enterrada no solo) os nossos radiadores são eléctricos. Pelo que nos sai significativamente mais barato (tal como a muitos dos vizinhos) manter dois aparelhos de ar condicionado a laborar continuamente de outubro a abril e intermitentemente em maio e setembro do que ligar os radiadores ou montar outro qualquer sistema de aquecimento.
Uma vez tentaram, longamente, convencer-me de que o isolamento das casas suecas é totalmente distinto do das portuguesas. Talvez. Não lhe estejamos continuamente a bombar calor, vindo seja de onde for e elas gelam em dois dias! O tal termómetro que tenho à janela mantém em memória um registo das temperaturas máximas e mínimas das semanas anteriores, que por curiosidade consultei em janeiro do ano passado, ao regressar do Natal em Portugal. Nessa altura ausentámos-nos uma quinzena, pelo que deixámos o aquecimento desligado. Para uma temperatura exterior mínima de três graus abaixo de zero, a interior desceu até aos quatro, positivos claro. Eu tive quatro graus dentro de casa! E isso foi-nos de facto confirmado pelos os amigos a quem costumamos pedir para nos ligarem o aquecimento doze horas antes de chegarmos e por quem fazemos o mesmo se as datas de viagem não forem coincidentes. “Estava mesmo fria, a tua cozinha!”
Acabei de engolir o líquido quente, olhei lá para fora onde o sol brilhava e resolvi que sendo o frio muito ou pouco não quebraria o hábito dos dias livres, um longo passeio a pé à volta do lago. Enviei um WhatsApp em busca de companhia para a caminhada e fui-me preparar. Desta vez não me limitei a adicionar um agasalho grosso à roupita que tinha no corpo e que geralmente tanto serve para verão como para inverno desde que se lhe junte umas sandálias e uns óculos de sol ou um sobretudo e umas botas, conforme o mês. Adotando a máxima sueca que diz que não há mau tempo, há é gente mal vestida, comecei por trocar as calças de ganga por umas calças de desporto, pretas e resistentes, de Lycra tão espessa quanto a Lycra possa ser. Por cima delas vesti as calças de neve (foi provavelmente a segunda ou terceira vez desde que aqui vivo que as coloquei sem ser para ir efetivamente brincar na neve), mantive a t-shirt cor de vinho de mangas compridas e por cima dela uma competente camisola polar, cor de tijolo, achada numa promoção. Para terminar, o meu casaco habitual dos dias frios. Ainda ponderei usar umas meias térmicas por cima das soquetes curtas de algodão, coisa que nunca antes fiz, mas desisti, fiquei-me por enfiar os pés nas botas de pele forradas a pêlo, de boa marca sueca, acertadamente compradas por impulso à conta da etiqueta “Made in Portugal”. Na cabeça o espesso gorro alaranjado no qual abri, a olho, um buraco na nuca para o rabo-de-cavalo poder sair (com todo o cabelo que tenho, se fica dentro do gorro, esteja preso ou esteja solto, ao fim de um quarto de hora estou cheia de comichão e acabo por escolher ficar de cabeça descoberta... o que logo abaixo dos sete graus positivos deixa de ser boa opção, que as orelhas gelam...). E luvas grossas, claro, que coloquei assim que a porta de casa fechou. Caminhar, caminhar, para não arrefecer!
Comecei a andar. À saída do portão baixinho que limita jardim evitei com cuidado os blocos de gelo escondidos debaixo de uma camada fina de neve. Já não se distinguia onde era passeio e onde era estrada, o peso das rodas dos carros sobre a massa branca e húmida tinha-a transformado em armadilhas escorregadias e perigosas, apesar da gravilha e do sal de estrada espalhados nas vias todas as madrugadas pelos tratores da kommun. Ao fim da minha rua termina o alcatrão, é um bairro familiar, uma estrada sem saída que se desagua num caminho para pernas e bicicletas. Logo à esquerda, ao início da via pedonal, há uma colina. Tem um declive considerável, encosta picada de um lado, mais suave do outro. Despida de vegetação tirando a erva rasteira é no entanto rodeada de arvores por todos os lados excepto na base, larga, quase em semi circulo, que desemboca na local onde eu caminhava. Essa colina, por sinal muito convidativa até para quem não mora aqui, tal como a maioria dos montes e montinhos existentes em todas as áreas habitacionais foi feita por mão humana, contemporânea das casinhas de habitação. Para quê? A resposta óbvia leva dois a três invernos a ser percebida... para que as crianças possam escorregar de trenó no local onde vivem, sem dependerem da disponibilidade dos pais, para poderem tirar todo o partido das brincadeiras de inverno. Cá em casa essa lógica funciona muito bem. Para duas crianças há cerca de uma dúzia de trenós ou coisas parecidas, que eles elegem a seu gosto, conforme a dureza, humidade e profundidade da neve ou dependendo daquilo que têm em mente fazer. E se quando eram mais miúdos os trenózinhos clássicos de 30 centímetros de altura, integralmente em plástico sólido e leve, eram os eleitos, esses ficaram agora relegados para segundo plano enquanto umas pranchas que parecem as da praia, com um revestimento para deslizar melhor, passaram a ser as favoritas. Mas aquela hora, dia de semana, apenas uma mão cheia de crianças de uma pré-escola das proximidades ali se encontravam, com duas educadoras. Caminhei sem me deter até ao parque infantil agora coberto de neve e depois passei através do túnel, sob a estrada que leva ao hospital, virando então à esquerda, começando de seguida a descer em direção ao lago.
O lago de Karstorp fica aqui ao lado de casa. Dez minutos a pé, nem cinco de bicicleta. Há uma ligeira depressão no terreno, está rodeado de bosques que fazem com que fique de certo modo escondido, não se adivinha desde estrada larga que leva ao hospital e que o circunda, nem se vê do alto do edifício. Do oitavo andar não se vislumbra água, apenas as copas das árvores. Da mesma forma, quem passeia à volta de Karstop, apesar de estar a umas centenas de metros das urgências, outro tanto dos campos de futebol e do pavilhão do gelo e não mais de quinze minutos a pé (quilometro e meio, talvez) de uma zona fortemente comercial da cidade, tem a ilusão de estar perdido na floresta, isolado do mundo! O lago não é grande nem pequeno (área de treze hectares, diz a internet), tem um trilho acidentado a toda a volta de cerca de três quilómetros, andando depressa uns quarenta minutos chegam para percorrê-lo na totalidade. Supõe-se que seja bastante profundo pois no verão pouco aquece além da superfície e no inverno só congela a sério quando o frio é suficiente para congelar também o grande lago que se situa a vinte quilómetros daqui, para norte.

Caminhei despreocupadamente ao lado do arvoredo. Uma pré-escola recente à direita, acolá à esquerda mal se distinguiam os arbustos de framboesas, carregados no verão, mais à frente um antiquado hotel (antiga casa principal de uma quinta, bastante demodé como local de hospedagem mas suficientemente bom como sala de conferencias e definitivamente aprovado em termos de cozinha) e à distancia de uma ladeira de uns metros, o lago. Estava branco, em quietude, silencioso. Só se ouvia a neve a ranger debaixo dos meus pés. Desci, apenas contemplando. Do outro lado, agora alvos, os dois cais de madeira que se estendem sobre as águas. Chegando ao extremo mais setentrional do lago deixei a via pedonal alcatroada, segui um caminho de terra até à pequena praia gelada (que antes de voltar a receber crianças de fato de banho receberá na primavera alguns casais de gansos e a sua imensa prole) e não resisti a ir até à margem, coberta por uma camada de gelo que me pareceu algo fina e tactea-la com a ponta da bota. Continuei depois pelo carreiro, bem provido em termos de subidas e descidas mas suficientemente largo para que bicicletas circulem à vontade (desde que não apareça um pai ganso zangado quando os gansinhos estão a descansar no caminho... já uma vez me fizeram dar a volta o mais depressa que pude, arrastando a bicicleta atrás de mim). Após umas centenas de metros cheguei ao topo da primeira e maior das plataformas que avançam para fora de terra. Desci cuidadosamente as duas dezenas de degraus alvos, agarrando-me ao corrimão por precaução. Um queda por causa do gelo escondido seria desastrosa. Se bem que mesmo ali à beira a profundidade seja pouca, a água estava gelada. E, se seca e confortável estou a pelo menos 15 minutos de casa, molhada teria tempo de entrar em hipotermia! Uma vez ultrapassado o último degrau segui em frente, imprimindo as minhas pegadas na neve imaculada que cobria o chão de madeira. Mesmo no extremo do cais há uma escada metálica, cujos contornos habitualmente desaparecem, imersos. Mas agora, à medida que o gelo se foi formando foi sendo empurrada para a superfície e parece flutuar. Dei-lhe um safanão, curiosa. Continuou imperturbavelmente estática. Depois recuei, receosa. Sabia que a profundidade ali era de pelo menos quatro metros e a prudência costuma ser boa companhia. Tirei quatro ou cinco fotos com esperança de que os ângulos em que as coloquei as fizesse sobreponíveis às de junho e agosto (posso estar enganada, mas acho que em julho esteve sempre a chover...) e decidi subir as escadas e voltar.
Parte 2 - Um verão que meteu muita água
A plataforma de madeira está quente debaixo dos meus pés descalços. Oscila levemente à medida que as crianças correm para se atirar à agua. São sete da tarde, inicio de agosto e desfruto de um fim de tarde típico. O sol segue alto no céu, há uma série de dias que brilha sem parar, sem nuvens nem brisa. O calor sente-se na pele e no ar. As água do lago, que ainda há pouco mais de um mês nos enregelavam até à alma só de molharmos a mãozinha, estão agora numa temperatura tolerável, roçando o agradável, pelo menos no meio metro mais superficial. Uma velhinha, lá em cima, chega de bicicleta. Estaciona, tira o vestido e embrulha-se num roupão. Desce as escadas até à plataforma, onde quatro crianças e seus respetivos adultos deixaram mais ou menos espalhadas roupas e toalhas, pacotes de bolachas, caixas com minhocas, embalagens de fruta e tantas canas de pesca quantos pares de mãos infantis. A plataforma tem um metro e tal de largura, espaço útil reduzido a metade, com tanta tralha. A velhinha olha para tudo com desagrado, mas não se queixa. Não fizemos exatamente nada de mal, apenas nos instalámos onde um sueco não ficaria. Mas eles dão um mergulho (literalmente um... dois, vá, se forem crianças) e afastam-se para a erva, para apanhar sol. Nós estamos ali há horas, um entra e sai continuado e ainda não nos fartámos. A Erzsebet e eu conversamos, concentradas, sobre qualquer coisa muito importante, como se devemos fazer o piquenique no fim de semana seguinte antes ou depois de ir ver os veados ao mini zoo e se nesse piquenique levamos nuggets e batatas ou pão e um frango assado a sério. A senhora mais velha passa por nós ostentando com desdém e pergunta de forma seca e sem nos olhar se ninguém está a dar atenção às as canas, cujas linhas e bóias se encontram na água. É verdade, esquecidas estavam, que tola distração e há de facto uma com a ponta a abanar. Dou um salto enquanto chamo a minha filha, mas mais não conseguimos do que ver um peixito conseguir liberta-se e fugir. A senhora continua em frente pelo meio das crianças, impávida, tira o roupão revelando um fato de banho com muitos anos, desce os três degraus metálicos de costas e deixa-se escorregar para a água. Duas braçadas para a frente e logo duas a recuar. Sobre dois degraus, desce e repete o processo. Sai da água, veste-se, calça-se, atravessa a plataforma em sentido inverso e desaparece na sua bicicleta. Entretanto três das nossas crianças voltaram a perder o interesse nas canas e pulam com espalhafato para a água. O meu filho fica e vigia as quatro canas. Numa delas morde outro peixito distraído e desta vez somos mais rápidos e tiramo-lo da água. Foto ao pescador, agora vem a miudagem toda para outra foto, o Donát ajuda-os a soltar o peixe do anzol e o meu rapazinho devolve-o à água. Não há mais nada para ver ali, conversa com tudo combinado, pelos que dou uma corrida pela plataforma e pulo também. Deixo-me flutuar por dez minutos, mexendo apenas os pés de vez em quando, antes de sair para secar. Já é tarde, começam a chegar os mosquitos. Recolhemos os nossos pertences mas, com a cana ainda esticada nos seus quatro metros, volto às escadas, decidida a saber qual a profundidade do local. Todo o comprimento da cena não chega para alcançar o fundo do lago. Recuo um metro na plataforma e tento outra vez, sem sucesso. Recuo mais um metro e agora sim, resultou. Livra, é mesmo muito! Verificamos que não nos esquecemos de nada, cada um pega na sua bicicleta e pedalamos pela margem, sete minutos até nossas casas. Costumamos seguir todos para o mesmo local, uma vez em vossa casa, outra vez na nossa. Sentar na relva, bebericar qualquer coisa, comer batatas fritas, panquecas, baguettes com manteiga de alho, qualquer coisa e a hora vai de súbito adiantada, passa das nove. Mas o tempo está tão bom e os miúdos estão de férias. Amanhã é dia de trabalho, mas com sol no céu até às dez e luz intensa até quase às onze (onze da noite é uma expressão que perde o sentido nesta altura do ano), quem é que tem vontade de ir para a cama e dormir? Eu não, certamente....

Nos outros anos que aqui morei nunca aprovei nem aproveitei este lago como zona balnear, mesmo com tantos outros a fazê-lo. O maior impedimento era a água escura. Não é suja nem tem lama, não, é apenas escura, como se fosse preta, à vista desarmada. Quando se tira, porém, um balde cheio, ou se investiga naqueles metros de praia fingida, de águas rasas onde brincam crianças, não ha nada de estranho, apenas água límpida e transparente como toda a água deve ser. Basta aumentar um pouco a profundidade para que tudo pareça opaco.
Este ano a Erzsebet e o Donát convenceram-me a experimentar o lago. Ou melhor dizendo, em junho os miúdos deles demostraram aos meus que era imperativo levar-me lá e eu fui, meio a reboque. Primeiro só ver, de calções mas sem fato de banho, distanciada, para marcar a minha posição de dúvida. Evidentemente, os miúdos divertiram-se imenso! Tentei racionalizar... a água da piscina do parque Terra Nostra, nas Furnas, também não deixa ver mais do que alguns centímetros antes de tudo ficar turvo e para mais cheira a enxofre e isso nunca me incomodou. Se calhar tentava outra vez, não? No dia seguinte já levei o biquíni por baixo do vestido florido, não fosse dar-me a vontade... Claro que não resisti à tentação e pulei para dentro do lago. O facto da água ser tão escura (que coisa invulgar, de facto) faz com que, estando eu dentro dela, não consiga enxergar mais longe que o meu umbigo. Nesse primeiro dia em que, por impulso me atrevi, saí tão depressa quanto entrei. Devo ter visto filmes a mais em miúda com monstros das profundezas, ameaçadores e com dentaduras afiadas e nesse dia resolvi não dar oportunidade ao líquido toldado para me revelar eventuais seres estranhos, escondidos e inesperados. Mas a continuada hesitação sobre o lago das águas escuras só durou até ao dia de sol seguinte. Porque, claro, a água é de facto limpa, a temperatura não estava mal, há profundidade (até demais) para pular sem medo e nadar à vontade, a área envolvente é notavelmente agradável, uma profusão de verde e flores e fica tão perto de casa que nem há necessidade de planear grande coisa, basta ceder ao impulso, pegar na toalha e na bicicleta e vir.
E foi isso precisamente que eu fiz, um dia, sozinha, já derrubada a resistência inicial. Quem mora da Suécia aprende a consultar a previsão do estado do tempo tantas vezes como consulta o relógio, para não perder nada que valha a pena nem ser apanhado sem capa e galochas numa chuvada repentina. Num determinado sábado logo depois do solstício de verão (um daqueles dias compridos em que o dia se mete pela noite dentro e a empurra tanto para a frente que se torna possível passear à meia noite apenas com a luminosidade ténue que vem do ar) eu trabalhava das nove às dezanove. Mas ia estar sol e calor, que pena para mim, os miúdos estavam orientados para gozar o dia. A não ser que me afoitasse... afinal Karstorp é tão perto do hospital como de casa... O volume de trabalho foi ligeiro, como esperado num dia de verão a sério e dois minutos depois da hora de saída já tinha tudo reportado e explicado ao colega que vinha fazer o turno seguinte, que te corra bem a noite, espero que durmas qualquer coisa, tchau! Peguei na minha mochila e fechada na casa de banho tirei as calças e camisola azuis do hospital, troquei a roupa interior por um biquíni e completei com os calções e t-shirt que trouxera de manhã. Reuni os meus pertences na mochila e desci para o parque de estacionamento. Destranquei a bicicleta, montei e avancei decidida e veloz. Antes das dezanove e quinze já me encontrava na plataforma de madeira. Ainda hesitei. Duas famílias com crianças na água, três senhoras mais velhas que haviam entrado pela segunda vez e saíam definitivamente, um sujeito de saco às costas fazia paddleboard ao longo da margem e um grupo de adolescentes, mais longe, apanhava sol em silêncio. Ninguém conhecido, ninguém me ligou nenhuma. Encolhi os ombros, tirei a roupa, dei uma corrida e atirei-me à água. Que bem que me soube, depois de um dia de trabalho. Andei por ali vinte minutos. Sequei-me levemente, vesti-me e pedalei descontraidamente para casa, sentindo-me relaxada.
O verão na Suécia, quando existe, é magnifico. Só que, vamos enquadrar a coisa a sério, para além daquela música popularucha que todos os anos alguém canta até à exaustão, “Sommaren ar kort” (o verão é curto), há também uma piada recorrente que diz muito “Adoro o verão na Suécia, no ano passado foi a uma terça-feira, a que dia será este ano?”.
No primeiro ano que passei na Suécia não vi o verão. Creio que houve uns dias bons em maio e junho, pois as pessoas mais desocupadas do prédio onde morava nessa altura pegaram nas suas cadeirinhas desdobráveis e foram apanhar sol para o relvado em frente a casa, algo que me desconcertou. Mas nessa altura ainda me regia pelas regras do sul da Europa e mesmo nos dias em que as máximas roçaram os vinte e dois graus os miúdos foram para a escola de calças compridas e casaquinho. Só que isso aconteceu dois dias, três talvez, nos restantes a coisa andou pelos dezoito, dezanove graus o que para mim na altura nem primavera era. Quando, a vinte e poucos de junho viajamos para Portugal, choveu copiosamente desde que saímos de casa até entrarmos no avião. Ao estacionarmos o carro em Gotemburgo o nosso calçado de verão e casacos finos mal suportaram os doze graus que estavam. No regresso não foi tão mau e creio que em julho houve mais um ou dois dias bons. Em Agosto, de volta ao trabalho, tive que vestir um casaco que em Portugal seria de inverno.
No segundo verão na Suécia, quando o bom tempo chegou em maio, percebemos que era para aproveitar. Os dias são tão longos que há a sensação de se dispor da tarde completa depois de se chegar a casa, pelas cinco. Perde-se a noção do tempo, o sol vai sempre alto, de repente olha-se para o relógio, passa-se das nove e meia e ainda não se jantou. É comer qualquer coisa a correr e tentar ir adormecer os miúdos enquanto o sol brilha. Porque às quatro da manhã o sol está alto no céu outra vez, aqui não há estores nem persianas e ao fim de duas semanas damos por nós a desejar que seja Dezembro e venha o breu para podermos dormir. Sempre tive cortinados espessos e pesados com efeito blackout, solução manifestamente insuficientes mesmo com dias camadas. A claridade infiltra-se, reflete-se e espalha-se por qualquer ponto não tapado. Há coisa de um ano comprei uma espécie de persianas interiores em tecido totalmente opaco, que se montam com umas pequenas calhas no interior da janela para bloquear quase impecavelmente a entrada da luz. Encomendadas em janeiro, da Polónia, chegaram no fim de fevereiro onde a evolução na luminosidade já se nota positiva e, com ajuda, montei-as no mês seguinte. Mesmo a tempo, que se em março e abril a quantidade de luz é idêntica à de Portugal na mesma altura do ano, a partir de meados de maio torna-se exagerada. Com a janela rigorosamente tapadinha foi o primeiro ano que não dei por mim em junho a desejar que chegasse a escuridão do inverno, pelo menos até às seis da manhã fui conseguindo dormir. Em setembro o Sol brilha mesmos, em quantidades para mim normais e no fim de outubro começa um negrume que dura até ao Carnaval, que cá não há.
No terceiro verão na Suécia, particularmente chuvoso, já estávamos orientados sobre como tirar o melhor partido de cada dia bom, havia até amigos com piscinas insufláveis para aproveitar qualquer oportunidade onde os meus filhos também cabiam. O quarto verão foi parecido e no quinto, com um quintal grande, dois aspersores de rega e uma passadeira de plástico que ligada a uma mangueira fazia uma espécie de escorrega improvisado na relva, tive a casa cheia de miúdos sempre que a temperatura chegava aos vinte graus. Dizem que nesse verão acabou por fazer muito calor, durante muitos dias seguidos. Dizem. E a relva confirma, estava amarelada quando regressamos. É que as cinco semanas garantidas que passamos no sul da Europa (onde mesmo que haja nuvens e uns pingos de chuva o calor não falha) faz com que o clima da Escandinávia perca parte da sua importância e que as constantes oscilações meteorológicas se dissolvam na memória.
Repito, o verão na Suécia, quando existe, é magnifico. Mas durante muito tempo era como um mito, para mim. Diziam que existia, mas eu nunca o tinha visto realmente nem me tinha debruçado seriamente sobre o assunto. E então chegou 2020. Avizinhava-se o nosso sexto verão em terras nórdicas. Nesse ano de acontecimentos atípicos, recheado de receios e restrições, lá para fins de abril percebi que ia passar, na realidade, o meu primeiro verão neste país. E os meus filhos também. Era melhor preparar-me. Assim que as lojas receberam piscinas desmontáveis comprei uma. Estrutura metálica e tela azul, dois metros por quatro, noventa centímetros de profundidade se não estiver cheia até ao cimo. Depois foi começar a vigiar o boletim meteorológico. A meio de maio a temperatura subiu, montou-se a piscina. E na semana seguinte, quando as mínimas estabilizaram acima dos oito graus, encheu-se. Mas esses processo demorou mais do que o pensado pelo que o pequeno aquecedor para a água, adquirido ao mesmo tempo que a piscina, não teve tempo de mostrar o que valia. Nesse fim-de-semana houve sol, máximas de vinte e três, um luxo! Convidou-se o pessoal, adultos cá fora de copo na mão com sangria ou refresco, miúdos na piscina felicíssimos durante as duas horas em que aguentaram desfrutar dos magníficos catorze graus a que água, saída diretamente da torneira, se encontrava. Verdade seja dita, os miúdos arrefeceram e tiveram que se ir vestir, mas o tempo estava tão bom que ficamos todos no jardim até bem depois do sol se pôr.
Nessa altura houve umas quatro semanas de bom tempo. Quer dizer, sol no céu, pouco vento e máximas pelos vinte e dois, vinte e três graus. Importa aqui dizer uma coisa. Num dia de vinte e três graus na Suécia tenho tanto calor como com vinte e oito ou vinte e nove em Portugal. Não sei se é da inclinação solar, das horas de luz, da humidade. É mesmo mais quente. Infelizmente à sombra ou com uma brisa a sensação térmica retorna imediatamente à realidade. Num dia de vinte e quatro, vinte e cinco, vinte e seis graus, toda a gente procura um local onde mergulhar, está francamente quente e os suecos de gema começaram a queixar-se. Se chegar aos vinte e sete ou vinte e oito graus é como se fossem os quarenta de Portugal! Eu não me queixo, mas lá que está muito quente, está. É raro, no entanto, que um dia quente corresponda a uma noite quente.
Nessas quatro semanas de bom tempo o tal aquecedor funcionou como devia, bem alimentado a electricidade, mas incansável a amornar a água e a tornar os banhos mais apetecíveis e mais demorados. Os meus filhos e os seus oito metros cúbicos de agua foram os reis da vizinhança. Quase todos os dias era um alegre entra e sai de miúdos. Acabavam invariavelmente cheios de fome. Por vezes dava-lhes panquecas descongeladas, outras vezes fruta e bolachas, tarte acabada de fazer, chegaram a conseguir negociar comigo uns quadrados de pizza. Um dia fui apanhada desprevenida e para além de meio quilo de uvas só tinha uma embalagem de knäckebröd (um pão sueco crocante e seco, como se fossem tostas) e quatro embalagens de meio quilo de tomate cereja. Marchou tudo!
Mas a piscina era evidentemente um escape, um “salva-férias em terras frias”. Portanto, sempre que a temperatura do ar chegava aos vinte e quatro ou mais era dia de nos enfiarmos no carro e ir passar um bocado a um lago qualquer. E quanto mais avançado fosse o verão mais aquecida estava a água, tornado-os cada vez mais apetecíveis.

Nos primeiros cinco verões que passamos na Suécia apenas tínhamos experimentado o Simsjön, um pequeno lago a cinco quilómetros daqui. Tem um simpático areal, que deve a sua existência a dedo humano, um relvado interminável, agua limpa e não muito fria, um fundo confortável para pé descalços, uma zona baixinha onde crianças podem brincar à vontade e outra mais profunda para onde se pode ir avançando pela água ou caminhando sobre um longo pontão de madeira. E, na outra margem, amorosas casinhas de pezinhos na água, um cenário idílico que no entanto só tem este valor que deliciosamente lhe atribuímos (a ilusão da disponibilidade da boa vida ao abrir da porta) durante um punhado de dias em cada mês de verão. Creio que num ano fomos lá três vezes e passados dois anos mais uma ou duas. De resto, há um outro lago bem no centro na cidade, também adaptado para praia fluvial (ninguém informou os gansos) onde, em alguns dias de calor, levei os miúdos a molhar os pés (os pés e só os pés... tem gansos...) enquanto passeávamos de bicicleta. E nunca havíamos brincado às praias em mais nenhum local, não conhecíamos mais nada.
Assim, no inicio do verão de 2020, a piscina no quintal (que chegamos a experimentar numa noite de 13 graus de temperatura ambiente) e Karstorp (a duas pedaladas de distância), pareciam-nos perfeitos. Mas quando veio finalmente um dia que justificasse gasto de tempo e gasolina, voltamos ao Simsjön. Um dia esplêndido, parecia uma praia a sério. Até havia uma roulotte a vender gelados e bebidas frescas, seria uma pobreza no sul da Europa mas era uma fresca e incomum novidade nestas paragens. Foram umas horas bem passadas, imensamente divertidas. Mas quando me apercebi-me que outros bons dias vinham a caminho achei que havia que aproveitar cada um deles sem estar sempre no mesmo sitio. No dia seguinte perguntei no hospital onde é quase podia ir mais, de Google Maps aberto para me orientar, que isto de me dizerem apenas um nome que para mim não significa nada seria pura perda de tempo. Identificaram-me de imediato três locais a cerca de meia hora de distância e dois a cerca de uma hora. Desse modo se iniciou a loucura dos lagos, nesses dias de calor de 2020. Assim que saía do trabalho era passar em casa, pegar nos miúdos, fruta, água e andar. Conhecemos locais lindos e contas feitas, gostamos de todos. Estivemos em praias que deram fotos fantásticas e banhos mais ou menos e estivemos em relvados onde torcemos o nariz ao chegar mas de onde não queríamos sair depois de estar na água. Algumas viemos a repetir e a outras não quisemos voltar.
Um dia, a um sábado de manhã, decidimos ir a um dos locais mais distantes, eram sessenta e tal quilómetros, mais de uma hora de condução. Ficava no segundo maior lago da Suécia, o Vättern que é também um dos mais profundos. “Parece o Mediterrâneo” disseram-nos. A primeira vez que estivéramos à beira desse lago, em Hjo, uma vila cheia de antigas casas de madeira, era Novembro de 2014, estavam zero graus, vento e caía neve molhada. As rajadas provocavam ondas que pouco ficavam a dever às do oceano. Olhamos para o cenário desolador, enfiamo-nos no carro e voltamos para casa. Depois disso já lá voltáramos, duas ou três vezes, no início da primavera quando nada tem cor, mas bastara para reconstruir a memória do local. A ideia que tínhamos desde então era uma imensa massa de água tranquila mas gelada ao toque na ponta dos dedos. O local que nos haviam indicado era um pouco mais distante, não nessa localidade, mas na mesma margem do lago... que expectativas devíamos ter para Djäknesundet? Como é que esse sítio de nome impronunciável poderia parecer o Mediterrâneo? Tinha estado a trabalhar nessa noite, pelo que fui toda a viagem num estado de irritação natural, apesar do dia esplêndido. A dois quilómetros do destino deparei-me com uma estrada poeirenta, esburacada e pior de tudo, com veículos milimetricamente arrumadinhos de ambos os lados, o que não antevia nada de bom para o pequeno parque de estacionamento que me haviam descrito. Mas já que estava ali era para seguir até ao fim! Onde, claro, se confirmou uma confusão de carros estacionados. Aquela hora, ninguém ia sair. A vontade de dar o dia como perdido ou de ter que voltar à estrada larga, estacionar e caminhar aquilo tudo, era nula. Com teimosia olhei à volta três ou quatro vezes antes de me dar por vencida. Em todo o buraco havia um carro. Lá ao fundo... não, estão duas motas, que desperdício de espaço... Mas se eu encostar o meu carro a dois centímetros da mota e do outro lado alguém empurrar o ramo da árvore enquanto eu recuo, desde que se esvazie o porta bagagens primeiro e saia toda a gente pelo banco da frente, cabe! Feito. Vamos pegar nas coisas e andar, estacionámos o mais perto possível, são apenas uns oitocentos metros com esta tralha toda na mão. E não se queixem, que aquela gente que além vem já calcorreou mais de um quilometro e ainda vai andar o mesmo que nós! Nessa altura ouve-se uma voz alarmada diz “Não acredito, esqueci-me dos calções de banho! E agora?” “Vai de boxers que isto é a Suécia, ninguém liga. Ou então fica a olhar...”. A mesma voz, ainda inconformada “Pois, estes boxers não têm desenhos, pode ser que ninguém repare.”, enquanto seguíamos caminho. Ao fim de quinze minutos chegamos a um local minúsculo e repleto de pessoas. Um areal ínfimo totalmente ocupado. Nós apenas queríamos estender uma toalha e largar as nossas coisas, mas havia famílias com grandes mantas, mesas e cadeiras desdobráveis que também procuravam lugar. Mulheres muçulmanas de cabeça e corpo bem cobertos olhavam em redor, certamente perguntando-se que tranquilidade e espaço teriam em tal sítio, quando os respetivos marido e filhos se banhassem. Seguimos um carreiro, trepamos umas pedras, apenas para descobrir que qualquer área possível já se encontrava tomada. Demos mais duas voltinhas, quase a desesperar. Então houve um casal que avistou ao longe um grupo de conhecidos e levantou arraiais de onde estava. Lá estendemos rapidamente todas as toalhas num local onde só na verdade apenas cabia uma e respiramos fundo. Finalmente olhamos em volta. O local era estupendo! Parecia as calas de Ibiza onde estive há tantos anos. Uma língua de água absolutamente transparente com fundo de areia branca, que se mete pela terra adentro, rochas claras dos dois lados e pinheiros baixinhos e retorcidos a crescerem nelas. Sim, pinheiro-manso! Nada de pinheiro bravo, pinheiro nórdico, abetos ou o que fosse, apenas pinus pinea! Tudo com reflexos do azul do céu. Mais ao longe, barcos onde pessoas iguais a nós (mas certamente com mais dinheiro) se bronzeavam ao sol ou pulavam para o lago e até motas de água, algumas a rebocar praticantes de ski aquático. Os risos das crianças, o som de corpos a cair na água, zumbidos de insetos e de indistintas conversas, o sol forte a bater na pele. Que local extraordinário! Não perdemos tempo e entramos na água. Mas claro, era Vättern e apesar de não estar fria, não era perfeita. Os vinte e poucos graus do lago não dificultavam propriamente o banho, apenas o tornavam um pouco mais curto. Em todos os outros locais onde estivéramos antes a temperatura da água seria pelos menos dois ou três graus mais elevada que naquele. Fomos entrando e saindo, comendo e mergulhando. Com a minha veia médica sempre alerta, não pude deixar de pensar que se houvesse ali um acidente seria complicada, a logística para o resolver. Na realidade leu-se nas notícias, passados umas semanas, que um dos pulos de altura absurda que alguns rapazes davam para a água tinha corrido mal. A ambulância não conseguira passar e entre rochas e arvoredo não havia como ativar o helicóptero. Resolveu-se com a boa vontade de um dos barcos que transportaram o ferido, imobilizado, à marina mais próxima, de onde foi então levado para o mesmo hospital onde trabalho. Mas no dia em que ali estivemos nada correu mal, apenas memórias agradáveis, saltos para a água fantásticos, “corridas” de um lado ao outro agarrados à bóia em forma de flamingo. E ninguém demonstrou o mínimo interesse pelo facto de um dos banhistas estar de boxers. No regresso a casa todos concordamos que a Suécia no verão pode ser absolutamente fantástica!
No dia seguinte, domingo, a temperatura ambiente previa-se mais fria, talvez até uns pingos de chuva. Ficámos pelo velho e conhecido Simsjön, indo a banhos apenas quando o sol descobria por entre as nuvens negras, de ar pesado.
Na segunda-feira parecia que o dilúvio tinha chegado. A temperatura caiu para os dezanove graus, mas com tamanha borrasca até parecia que estava frio. Os miúdos brincavam em casa dos amigos, galochas e capas de borracha. A previsões dos dez dias seguintes não prometiam melhoras. Desesperante. Ao terceiro dia, um casal amigo com raízes em Itália (onde tinham jurado não ir nesse verão, à conta do Covid) fartou-se. Arrumaram o carro, meteram nele os quatro filhos e partiram. À noite descansaram umas horas numa estação de serviço na Alemanha, apenas transitaram por Milão para recolher um saco de panini e umas chaves, sem beijos nem abraços e só pararam bem lá para sul, perto do Adriático, onde ficaram longas semanas a desfrutar do sol e do calor sem se preocuparem com o clima do norte da Europa. O mau tempo durou duas semanas. Não deu nem para a piscina do quintal. Veio uma amiga com os seus filhos visitar-nos no fim de semana, não conseguimos ir sequer ao fundo da rua. Depois, dentro do “mau”, ficou melhor.
Tive duas semanas de férias que começavam nessa altura. Fomos a um parque ver animais suecos e exóticos a uma cidade a duas horas daqui, sempre debaixo de chuva miudinha, casacos grossos vestidos. Mesmo assim valeu a pena. Em duas ocasiões fomos colher morangos numa quinta “apanhe você mesmo, pague e leve para casa”, dez quilos na balança e meio quilo na barriga. Numa dessas vezes encontramos uma lebre novita, molhada e assustada, escondida entre os pés de morangueiro. Assim que nos viu fugiu aos pulos. Um outro dia foi de passeio a norte de Gotemburgo, na zona do arquipélago. Água rasa, rochas redondas, casinhas vermelhas aqui e ali, aquela paisagem de postal sueco. Um solinho agradável, até tiramos o casaco leve e molhamos a ponta dos pés, mas nada que tentasse a um banho. O meu filho, enquanto observava os caranguejos, escorregou numa pedra com algas e caiu à água. Tornou-se assim o único de nós a ter já tomado um banho de mar neste país! No regresso ao carro, o miúdo de cuecas e com um casaco que lhe chegava aos joelhos, apanhamos framboesas silvestres ao longo do carreiro e à beira da estrada. Deliciosas, por sinal. Mais um dia bem passado sem, no entanto, ter sabor a verão.
Sem pancadas de água gelada a cair do céu o aquecedor da piscina lá ia cumprido a sua função e aos fins de tarde os meus filhos mais os dos húngaros conseguiam dar as suas braçadas. Não havia calor para outra praia.
Num desses dias de férias pendurei as bicicletas no carro, conduzi cinquenta quilómetros até Sjötorp e pedalámos sete quilómetros ao longo do Gota Kanal, até Lyrestad. O Gota Kanal é um estreito curso de água navegável que atravessa a Suécia longitudinalmente, desde Gotemburgo até ao sul de Estocolmo, num total de cento e noventa quilómetros, oitenta e sete dos quais escavados à mão e os restantes aproveitando lagos ou outros trajetos aquáticos. Conta com bastantes desníveis. Para que as embarcações tenham possibilidade de ultrapassar esses desníveis há no total cinquenta e oito pares de comportas que enchem ou esvaziam, podendo assim os barcos subir ou descer, literalmente, ao longo do canal. Nunca antes tínhamos feito esse percurso à beira da água, embarcações nos dois sentidos, dezenas de pessoas de bicicleta, tal como nós com piqueniques às costas. Até Lyrestad contamos pelo menos cinco pares de comportas. Ao chegar comemos o nosso frango, jogámos meia hora de mini-golfe, descansámos outro tanto (de gelado na mão mas casaco vestido) e pedalámos depois de volta a Sjötorp. Passados uns dias, com mais dois graus no ar e, perante a dúvida, fato de banho na mochila, fui com o Donát alugar um reboque aberto. Carregámo-lo com oito bicicletas, uma manta e sacos de comida e conduzimos em dois carros até Torsö, uma ilha no lago Vänern, a cerca de uma hora daqui, onde se acede uma moderna ponte arqueada. Atravessamos toda a ilha, descarregámos o reboque e cada um em sua bicicleta, entramos no ferry que faz um percurso de três ou quatro minutos até Brommö, uma ilha adjacente mais pequena onde não existem carros. Mais uma vez, dezenas de outros ciclistas, alguns com atrelados nas bicicletas onde às cabiam crianças sonolentas mas outras vezes estava toda a tralha necessária para ficar uma ou duas noites perdidos numa natureza em estado quase selvagem. Ali pedalámos por estradas de areia batida, talvez dez quilómetros para cada lado, parando pelo caminho para colher mirtilos selvagens ainda um pouco ácidos. Os mapas que tínhamos eram fracos, o GPS dos telemóveis pior ainda. Queríamos ir a uma praia grade, com alguma dificuldade encontrámos afinal a praia do lado, suficientemente boa. O calor era escasso mas deu para um mergulho rápido, toalha a postos para nos enrolarmos ao sair, apesar de tudo a água até estava boa, o ar é que não. Voltamos para trás acelerados, não fosse o ferry partir sem nós e termos que passar a noite ao relento.
Nas duas ou três semanas seguintes o verão foi mais ou menos assim, uns quantos dias mornos mas que não passavam disso, três dias de cada vez em que enquanto o sol brilhava dava para mergulhar rapidamente em Karstorp e no tempo restante, chuvinha miudinha que nem sempre molhava mas aborrecia. Comprámos canas de pesca a todos os miúdos (aprendemos por tentativa e erro) e eles passaram a ter outra razão para quererem ir aos laguinhos aqui ao lado. Escavavam no quintal de manhã em busca de minhocas e de tarde, uns dias uns outros dias outros, apanhavam uns lúcios e umas percas, pequenos e provavelmente distraídos, que voltávamos a lançar à agua. Estávamos no tempo dos mirtilos e do lingon (são do tamanho de mirtilos, mas sem nome conhecido em português e servem para fazer uma compota ácida e vermelha) e houve um dia molhado, no fim de julho, em que tentamos imitar os suecos e dar longos passeios na floresta enquanto apanhávamos bagas. Mas se os locais conseguem fazer isso dias seguidos, para nós essa primeira vez acabou por ser a única. Não era assim tão divertido. Para mais, começávamos todos a sentir algum azedume com a falta do sol e da oportunidade de sair daqui. Um dia, à hora de almoço no hospital, quando ouvi uma colega sueca mais velha comentar como o tempo estava agradável para andar nos bosques a apanhar lingon e cogumelos, não me contive e apoiada por uma colega grega, resmunguei tudo o que me ia na alma em relação aquelas semanas mais recentes de dito verão. Depois de provocarmos umas boas gargalhadas com a nossa indignação, uma outra colega, também sueca, uns dez anos mais nova que eu, encarou-nos e explicou que “muito bom está isto agora, quando eu era pequena podia chover junho, julho e agosto sem parar... assim que os meus pais entravam de férias enfiávamo-nos na roulotte e íamos para França ou Itália até a escola começar outra vez, não dava para ficar aqui!”. Credo! Nessa altura lembrei-me dos meus vizinhos da frente e da casa vazia. Os miúdos ainda se apresentaram na piscina nas primeiras semanas. Mas, tal como nos outros verões os vi fazer, um par de dias depois da escola terminar (os pais são ambos professores) atrelaram a enorme roulotte ao carro e desapareceram, para apenas regressarem imediatamente antes do início das aulas.

Finalmente nos primeiros dias de Agosto voltou o sol e o bom tempo! O desatino não foi tão grande como em junho, ficamos varias vezes aqui em Karstorp, perto e bom, mas também repetimos alguns dos locais que mais nos tinham agradado. Sol firme no céu, calor suficiente de dia e temperatura amena de noite. No fim de semana fomos experimentar o outro local mais distante que nos escapara semanas antes. “É uma praia linda, é como Maiorca!” Pronto, lá está esta gente com comparações sem sentido! O que me veio à ideia foram hordas de turistas, italianos a jogar freezbe com boa música alta demais, ingleses vermelhos como lagostas a curtir ressacas em espreguiçadeiras, bares e vendedores ambulantes barulhentos. Tudo isso numa floresta na margem do Vänern, o tal que é o maior lago da Suécia? Estão, não, está-se mesmo a ver! Sessenta minutos de condução sem sobressaltos até um parque de estacionamento com boa largueza e que lembrava outras paragens, com areia solta e arbustos rasteirinhos. Muitos carros mas muito espaço. Uns metros pelo meio de árvores, muitos delas pinheiros altos e desempenados. Terreno direito, sem rochas. Não havia hipótese de ter alguma coisa a ver com Djäknesundet, o outro local espetacular onde estivéramos havia umas semanas.
Não obstante, quando finalmente vimos a superfície espelhada do lago percebemos que a viagem não tinha sido em vão! E que era em Alcudia, não em Magaluf, que devíamos ter pensado ao imaginar Maiorca. Uma longa e plana praia de areia que era... uma verdadeira praia de areia, plana e longa. Sem dúvida nem discussão! Umas algas aqui e ali, pinheiros por trás, lá ao longe umas casas junto à agua. Água baixinha e miúdos à solta, ondas pequeninas, gente a jogar futebol e ténis de praia, crianças com baldes a construir castelos na areia, pessoas a flutuar preguiçosamente em bóias de formatos estranhos. A completar o quadro, a linha do horizonte. Desenhada a água, nada mais. O lago é tão grande que não se vê a outra margem, criando a ilusão perfeita de estar numa praia à beira-mar. E, como toque final, virada a oeste com sol de frente tal como na costa portuguesa acontece. Mas a temperatura era, felizmente, mais como a do mar das Baleares do que atlântica. Tínhamos explorado lagos encantadores, outros assim-assim, o tal sitio incrível, de postal, mas este... este era mesmo uma praia! Não pudemos voltar segunda vez, no entanto. Entre bancos à noite e o cansaço que lhes é inerente ou dias de trabalho intenso a terminar tarde de mais, não foi possível. Mas... praia é praia e fica na memória!

Num daqueles longos dias de chuva de julho tinha comprado bilhetes de avião Lisboa apesar da pandemia, um tiro no escuro. Foram alterados duas vezes, sem perguntar nem avisar! Da primeira vez inteirei-me porque tive sorte e calhou mas desde então passei a visitar diariamente o site da TAP e dei logo pelo segundo rearranjo, mais inocente. Os miúdos não sabiam de nada para não correr o risco de se desiludirem com algum revés impossível de resolver. A viagem estava marcada para a segunda quinzena de Agosto, que foi quando pude voltar a ter férias. Como correspondia já às duas primeiras semanas de aulas ainda tive que me entreter a trocar emails com a diretora da escola, que por fim lá autorizou duas semanas de faltas. Que isto neste país nunca fiando, se não concordassem ainda faziam queixa à Segurança Social e arranjavam-me sarilho para uns anos! A quatro ou cinco dias da viagem ficou finalmente tudo em ordem, os meus filhos felicíssimos e com mochilas miraculosamente preparadas dez minutos depois de terem sido informados. Como o tempo continuava bom, o périplo pelos lagos continuou até ao ultimo momento, no dia em que viajamos.
Daqui ao aeroporto de Arlanda, em Estocolmo, são cerca de trezentos e cinquenta quilómetros, quatro horas se não houver paragens nem imprevistos. E isto desde que melhoraram um trecho de estrada até Orebrö, que antes quatro horas e meia não chegavam. Com distâncias longas e gente pequena no banco de trás os melhor é sair bem cedo, ainda para mais não ha outros voos. Se houver azar, há este e mais nada, pior que perder o dinheiro é mesmo perder as férias. Por sorte nem ninguém precisou de parar, apenas o carro para meter gasolina, nem as minhas pernas não se queixaram e foi sempre a andar. A vinte quilómetros do aeroporto estávamos duas horas adiantados em relação ao horário previsto para estacionar. E, mesmo a calhar, ali antes de Estocolmo, para os lados do aeroporto, encontra-se o terceiro maior lago da Suécia, o Mälaren. Calor com fartura estava, mas o primum movens desse dia não foi tanto sensação térmica, antes a oportunidade de contabilizar uma banhoca em mais um dos grandes. Lá rebuscamos os cantos das malas até caçar os fato de banho (que mais tarde enrolamos, molhados e tudo, nos bolsos laterais das mochilas que levávamos às costas), o Google encontrou-nos rapidamente um local de veraneio adequado e foi só estacionar e entrar na água, onde ficamos uma hora e tal. De todo, não era nada de especial. Era amplo, mas fraquinho. Contudo, por causa desses sessenta minutos de mergulhos (os restantes trinta foram para petiscar qualquer coisa) podemos orgulhosamente dizer que no Verão de 2020 fomos a banhos nos três maiores lagos da Suécia!
Cheguei a Portugal mais bronzeada do que quem lá estava. Ainda me perguntaram se afinal tinha estado de férias ou a trabalhar. Com um encolher de ombros repetia que às cinco da tarde o sol vai alto no céu. Pior foi rebater a incredulidade dos que estavam convencidos que nadar num lago sueco era como fazer uma sessão de crioterapia. Duas semanas passaram num foguete, entre família, encontros de amigos em esplanadas ao ar livre com FP2 a tapar sorrisos, praias de mar, praias fluviais e boa comida. No derradeiro dia de férias estive num casamento que não poderia perder e na manhã seguinte, sem ter voltado a casa, voamos oura vez para norte. Ao chegar, o último sol de agosto brilhava firme e derramava calor. Mas claramente já não era verão. Não era mais possível retomar nem o ritmo nem as atividades. Desmontei e guardei a piscina. Prossegui com as minhas deambulações a pé sempre que o resto da vida mo permitia.
E do verão sueco, com périplos por lagos maravilhosos, passeios de bicicleta que quero repetir, excursões para apanhar morangos e mirtilos, cinco ou seis semanas de chuva e uma piscina no quintal mais um bronzeado que durou até Novembro, o que sobrou afinal? Na memória ficou Karstorp. Karstorp com as suas águas escuras e tépidas. Karstorp onde tantas vezes fiquei simplesmente a flutuar, a apreciar a paisagem verde envolvente, de costas para a margem mais próxima, um silencio que se fazia do canto das aves e do chapinhar e gritos de felicidade de quatro crianças. Para além disso ficaram as framboesas, deliciosas, que aprendi a enxergar ao longe, suspensas de frágeis arbustos ao fundo da rua, no caminho para o lago, no caminho para o supermercado, em todo o lado.
Foi assim o verão sueco. Há um álbum com fotografias impressas, coloridas imagens em tons de verde e azul, com muita água e registos de mergulhos, que o comprovam.
Parte 3 - Há-de voltar a ser verão, mas até lá cuidado com os alces
Olhei em volta, atenta. Queria voltar a absorver e usufruir do momento presente. Estava de novo no trilho coberto de neve. Sacudi da ideia as quentes memórias de outra estação e apressei o passo. O frio mordia-me a pele do rosto, que mais não tinha a descoberto, mas de resto a roupa era apropriada e quase senti vontade de tirar as luvas.
Inverti caminho, a Sofia e o seu bebé rechonchudo estariam à minha espera dentro de cinco minutos, ao pé da mercearia turca no bairro que há para lá do hospital. Mesmo em passo rápido e em condições climatéricas favoráveis o percurso tomar-me-ia pelo menos o dobro do tempo. Ao contornar o pedaço de margem que no verão se há-de voltar a converter em praia e que ainda havia escassos minutos estava deserta, vi uma família. Pai musculoso, barbudo, encorpado, pela trela um cão com o mesmo aspeto (tirando a barba) mas que parecia só querer brincar com as duas meninas pequenas que vestidas tal boneco Michelin parecem deliciadas enquanto saltavam e escorregavam no gelo. O homem grande pulava com elas, incentivando-as. Todos sorriam, até eu. E ocorreu-me, se o gelo aguenta com ele também aguenta comigo! Vantagem, aqui tenho a certeza de que não é fundo, o pior que aconteceria era ficar molhada. Eles estavam do lado da areia, então aproximei-me pelo lado dos juncos (não queria, de forma muito pouco sueca, invadir o espaço pessoal de ninguém) e primeiro a medo, depois mais confiante, avancei também sobre o lago. É uma sensação estranhíssima saber que entre mim e a agua não há nada. Apenas mais água. No estado sólido, mas água. Racionalmente sabia que a temperatura estivera várias semanas perto de zero, ou seja, o processo de arrefecimento tinha tido tempo de acontecer e havia mais de uma semana que estava em valores francamente negativos. Para além disso ali não havia água salgada a alterar o equilíbrio, nem entradas de ribeiros, pelo que o gelo não tinha como não ser espesso. Mas, emocionalmente... é água. Acabei por me distrair dessa angústia e ficar alguns minutos. Sem me afastar muito cheguei a ensaiar pequenas corridas só para poder travar de repente e deslizar, sentir o chão fugir e quase perder o equilíbrio mas sem cair, um cheirinho a adrenalina. No fim de semana havemos de ir ao lago do cimo do monte dar um passeio a sério, decidi, está gelado há muito mais tempo do que este. E lá costumam sempre estar dois ou três pescadores pacientes, com as suas canas curtinhas, a linha a entrar na água através de um orifício no gelo por onde mal consegue sair um peixe, um furo da largura de uma mão feito com uma enorme broca manual, uma espécie de parafuso gigante com uma pega em alavanca, que serve apenas para esse fim. Se lhes perguntar, posso saber exatamente quantos centímetros de solidez tenho debaixo dos pés e sentir-me mais sossegada. Dez bastam para caminhar, o dobro para os aventureiros que queiram conduzir.
De repente lembrei-me das horas, saí do lago e afastei-me em passa acelerado.
O bebé dormia placidamente, quase totalmente reclinado. Estava bem protegido, num casulo térmico. Por cima da roupinha de seis meses, um casaquinho leve, meias, luvas e um eficiente macacão acolchoado, mãos e pés bem escondidos. Uma manta quente a envolver tudo e para terminar, fechado até acima, o saco cama adaptado ao carrinho, que em países frios não é um acessório mas sim uma parte imprescindível do conjunto. Só se lhe via a ponta do nariz, a boca que esboçava um sorriso e as bochechas rosadas do frio, parecia realmente confortável.
Recordei-me nessa altura de quando, no nosso primeiro inverno na Suécia, tinha o meu filho dois anos, percebi que isto dos cachopos dormirem na rua não é um mito, é mesmo verdade. Na creche põe-nos a fazer a sesta cá fora, bem agasalhados, esquisitices dos países nórdicos. Primeiro estranha-se, depois entranha-se. Passadas umas semanas comprei um saco cama que se adaptava a qualquer carrinho de criança e deixei de ter medo de passear no frio.
A minha amiga tinha comprado leite e umas clementinas de Espanha enquanto esperava e tentava com ar divertido, sem sucesso e sem tirar as luvas grossas, descascar uma peça de fruta. “Hola, Sofia! Que guapo, tu niño!” Depois de lhe descrever brevemente o motivo do meu atraso, o nostálgico passeio junto ao lago, olhei com ar de dúvida para as suas parcas compras. “Precisas que te leve ao supermercado?” “Talvez para a semana, obrigada” respondeu com uma pequena gargalhada.
Nem a Sofia nem o Diego têm carta de condução, inexplicavelmente. A Sofia até sabe pegar num automóvel e fazer manobras simples, patrocínio do pai nos seus tempos de adolescente. Mas depois, entre a faculdade em Valência já na crença que ao fim de seis anos não teria emprego garantido no seu país, os verões em Londres, os dois a amealhar em empregos temporários (ela a fazer camas em hotéis, ele a servir em bares e restaurantes) para poderem emigrar assim que tivessem os diplomas na mão, a altura para tirar a carta nunca parecia a mais conveniente. Já na Suécia, o tempo foi passando e os planos foram-se adiando. De tempos a tempos dou-lhes pequenas ajudas, com o meu Skoda gasto e rodado mas fiável e espaçoso. Quando se mudaram do apartamento para a casa foram três viagens com tralha. Desde que ela ficou grávida encomendam online, de vez em quando, brutalidades de bens alimentares e outros produtos de supermercado que vou com ela recolher no meu carrito. Uma vez um empregado disse-nos, enquanto nos ajudava a carregar mais de vinte sacos grandes, de papelão, cheios de comida, que nunca tinham tido uma encomenda tão grande para um cliente particular. E na altura em que o pimpolho nasceu uma série de imprevistos fizeram com que tivessem de voltar ao hospital duas ou três vezes com ele. Nunca me pediram nada, mas não os poderia deixar ir de autocarro ou pagar trinta euros de táxi por um percurso de dois quilómetros. Ainda por cima era junho, sempre dia e tempo seco.
“Recebi uma encomenda de Espanha”, disse ela. Sorte a tua, pensei eu, a que mandei para o meu irmão no inicio de dezembro ainda não chegou... “Vem atrasada mas tenho um prenda de Natal para ti”. Agradeci, surpreendida. Algures de junto ao bebé sacou de um embrulho pequenino com o logotipo de uma conhecida marca galega de que muito gosto. E, na outra mão, um comprido e apetitoso fuet e uma embalagem de gordas linguiças.
Fomos falando e caminhando durante mais de duas horas, assuntos dispersos e sem interligação plausível, ela a empurrar o filho sonolento, eu a segurar os enchidos. Despedimo-nos com pena mas estava na hora de ir buscar os miúdos à escola.
Voltei para trás pelo mesmo percurso, percorrendo a neve compacta ao longo do lago gelado. Agora havia mais famílias com crianças a tirar partido do dia de sol ao ar livre. Mas era janeiro e mesmo com o céu azul e limpo, pelas duas e tal da tarde já se notava a luminosidade a quebrar, a adquirir um tom distinto, com falta de brilho. A minha mente divagou outra vez ao subir a ladeira antes do velho hotel. Devia ser do local, da vista e nessa altura, também da promessa da escuridão da noite a aproximar-se.

Pois por esses dias, ainda antes de ter chegado a neve, saí do hospital cansada e irritada, a lamentar-me que não fosse verão, para poder branquear a exasperação nas água escuras do lago, nem que fosse só sentando-me à bordinha da plataforma e mergulhando os dedos dos pés ou das mãos. De súbito, tive uma ideia que na altura me pareceu luminosa e que não hesitei em pôr em prática. Só que, lá está, esquecera-me momentaneamente que estava na Suécia, na metade negra do ano, como uma vez ouvi lhe ouvi chamar, onde a luz é muito pouca... e no escuro, não se vê nada! Cheguei a casa vinda de trabalhar, nem estacionei como deve ser e liguei o iPad, espreitei rapidamente ambas as webcam da pista de gelo do cimo do monte (estava aberta, limpa, luminosa e com meia dúzia de pessoas a divertir-se), peguei nos patins e voltei a entrar no carro. Aí vou eu, a conduzir no início da estrada que vai monte acima, casinhas com quintais dos dois lados. Por acaso ia devagarito, rádio a tocar baixinho, aquecimento ligado, a olhar em frente e mãos no volante mas completamente distraída do que estava a fazer, pensamento ainda na enfermaria do hospital. De repente sai-me à frente um enorme vulto aos saltos, vindo de um quintal à direita, atravessa desenfreado para a esquerda e desaparece no escuro. Pequenos cervídeos costumam andar por aí, corças fofinhas que se esforçam por se esconder. Mas este exemplar era de tamanho considerável, pernas longas, pescoço curto, aquela forma de correr característica. Mesmo no escuro, inconfundível, um alce jovem, robusto e completamente pateta! Tive tempo de travar a fundo, nem olhei a ver se vinha alguém atrás de mim. Só que atrás de uma cria inexperiente... pois, ao ligar os máximos, ainda assustada, vejo a mãe alce entrar na estrada, virar-se para mim e dar um passo na minha direção. É grande, o raio do bicho. Mesmo muito grande. O meu filho aprendeu na escola que uma criança de seis anos tem tamanho para poder pedalar de bicicleta por baixo da barriga de um alce adulto sem lhe tocar e naquele momento não tive duvidas de que isso era verdade. Aquela fêmea pareceu-me do tamanho de um autocarro! Bateu o casco da frente no asfalto duas vezes e eu, agora a começar a tremer, levei a mão às mudanças para engatar a marcha-atrás, sem desviar os olhos da estrada. Há uns anos, uma colega portuguesa ortopedista, descreveu-nos em linhas gerais os acidentes rodoviários com alces. São animais de tal volume, pesados e maciços, que deixam um carro e o seu condutor em mau estado, até porque muitas vezes levantam as patas da frente na altura do impacto e embatem com força no capot e no vidro. E trazem consigo um conjunto diverso e variado de pulgas, moscas de determinado tipo e carraças, que partilham generosamente com as suas vítimas. Eu a engatar a marcha atrás e a imaginar-me numa maca do hospital, cheia de sangue e pulgas, enquanto os ortopedistas se protegiam mais do que para o Covid antes de se chegarem ao pé de mim. Felizmente apareceu do outro lado uma carrinha pequena, que descia o monte. Ao aproximar-se da progenitora furiosa por trás fez com que o bicho se distraísse, se esquecesse de mim e recuasse para o jardim de onde saíra. O homem da carrinha olhou curioso e seguiu caminho. Entretanto outro carro chegara e esperava atrás de mim, sem perceber o que se passava. Ultrapassou-me e acelerou monte acima. E eu fiquei ali, num alvoroço, atemorizada, a ganhar coragem para voltar a pôr a primeira e passar mesmo à frente do alce que não se movera mais. Com esforço, consegui fazê-lo, avancei lentamente e tão chegada ao lado esquerdo da estrada quanto possível. A escuridão é de tal ordem, que mesmo estando numa zona habitacional e numa via que não é larga, ao passar pelo alce apenas vi uma sombra escura, não o identificaria se não soubesse. Depois, pelo retrovisor, vislumbrei-o a atravessar atrás do filho e voltar a ser engolido pelo breu.
Não consegui ir patinar. Dei meia volta assim que pude e enfiei-me em casa quieta a ver televisão e a beber cházinho!
Voltei a acordar dos meus devaneios e a observar em redor. Num riacho onde a força da água corrente fazia com que subsistissem algumas poças líquidas, dois patos tinham encontrado um charco onde se abanavam, satisfeitos. Mais à frente um ratito minúsculo sem medo do inverno passou a correr à minha frente, visão rara nestas temperaturas quando nem os pássaros dão sinais de vida. Daqui a uns meses estará tudo diferente outra vez, voltar-se-á a ver a erva a despontar, dezenas de diferentes tons de verde em março e abril, uma profusão de flores em maio, promessas de banhos em junho e julho, em agosto não, que quero ir a Portugal.
As crianças da colina há muito que haviam voltado para a escolinha. Mais uns minutos e estava na minha rua, duas vizinhas conversavam, olharam para mim com curiosidade, com um chouriço de quase meio metro na mão. Apressei-me a ir buscar os meus filhos. Não importa a estação do ano nem o frio que fazia, queria ir para a rua com eles e desfrutar daquilo que a Natureza oferecia.