Vou começar por explicar uma
coisita, assim bem pequenita, mas importante para que o resto faça
sentido: não me está a apetecer morrer. Mas é que não está
mesmo. Ou, por outras palavras, para não ser tão dramática: também
não estou com grande vontade de me expor voluntariamente a
atividades que possam terminar numa infeção viral potencialmente
grave. E se alguém me perguntar “Eh lá, mas afinal, és um homem
ou és um rato?” (um homem ou uma mulher, para o caso tanto faz)
responderei sem hesitar que quero ser um rato! Um ratito gordito,
enfiado na sua toca quentinha, que passa o dia a comer e a rebolar
satisfeito na palha, até a tormenta passar. Ah, mas bolas, há
aquela outra coisa... o Juramento, A Saúde do meu Doente...
Promessas solenes, professadas sem vacilar há quase 20 anos e
que se entranharam na maioria de nós sob a forma de valores éticos
e morais. Mesmo que pudesse não ficaria escondida num buraco. Vou
ter que ser Homem (ou Mulher, seja)! Mas ficarei mesmo revoltada se
me vir de forma fútil exposta a riscos evitáveis. Pronto, é isso.
Sou Pediatra e trabalho na
Suécia. Essa nação onde apesar de haver vírus iguais aos outros
em replicação na comunidade, não há quarentenas profiláticas, as
escolas estão abertas e as recomendações do governo têm sido
pouco mais que brandas em comparação com as medidas tomadas noutros
países. A vida segue quase normal, como se nada fosse. Há suecos
que creem que se permanecerem imóveis, estáticos, desinformados,
tudo lhes passará ao lado. Há outros que sabem que não, mas mesmo
esses não se indignam. Reconheço que há um par de características
sócio-demográficas que podem ser uma mais valia: o distanciamento
social é desporto nacional e a geografia do país implica uma
dispersão populacional significativa. São vantagens óbvias mas não
milagreiras.
Há duas semanas estive de
urgência durante a noite. A tenda exterior, onde se faz a triagem de
potenciais doentes com Covid-19, encerra durante a noite. Os doentes
entram diretamente no hospital e são tratados como não infetados
até que alguém demonstre o contrário. Não compreendo a lógica
subjacente a esta decisão. Os vírus não se transmitem de noite,
será? Portanto, atendi miúdos com febre e tosse, com febre e falta
de ar, com falta de ar e tosse. Sem máscara, sem viseira, sem nada.
Guarda distância, cuidado com a tosse, não respires, não respires,
não respires! Higiene da mãos, dos braços, das bochechas, das
orelhas. E a consciência clara e lúcida de que houvesse umas cópias
de SARS-CoV-2 a pairar no ar a próxima contaminada seria eu. A noite
acabou, o alívio chegou com a aurora (e até hoje continuo fresca e
viçosa, que sorte...) mas à medida que o consequente cansaço
crescia e as sobras da adrenalina desciam, comecei a ficar zangada.
Muito zangada. Com o descontentamento como força motriz
apresentei-me na reunião da manhã da minha unidade, num dia em que
o que me era devido era ter ficado em casa (para estar
suficientemente alerta para nova ronda da noite). A colega sueca que
terminava o seu turno noturno, feito na mesma (falta de) condições
do meu, relatava-o com meias queixas envergonhadas, sobre como se
sentira indefesa perante cada doente, cada potencial foco de
contaminação. Aproveitei esse frágil preâmbulo para refilar com
clareza, alto e depressa que não tencionava fazer mais urgência
nenhuma sem o mínimo de equipamento de proteção individual. Um
discurso bem assertivo, nada sueco. Olharam-me com surpresa. Blá,
blá, blá, não é preciso (apesar da pandemia e de o hospital ter
ativado o primeiro nível de alerta), blá, blá, blá, a higiene da
mãos, blá, blá, blá, é dispensável. Mantive-me firme, não
teriam como me obrigar a trabalhar desprotegida outra vez, arranjem
outro para esta noite e para a seguinte também, de casa não me
tiram, que sem material eu não vou. No burburinho que se gerou
distinguiu-se a voz falsamente calma da minha colega espanhola. Que
quando viera para a Suécia esperava encontrar um país melhor que o
seu, mas mesmo com factos apresentados e notícias catastróficas
aqueles que tomavam decisões no hospital se recusavam a ver aquilo
que era claro, que pensava que aqui todos os pressupostos de proteção
do cuidador eram uma certeza, um direito inquestionável e afinal...
Calou-se abruptamente, não se queria exceder. Mas uma colega
holandesa terminou-lhe a frase: “...é como se fosse terceiro
mundo...”. Não houve contraditório. A voz do meu chefe rompeu o
silêncio incómodo que se seguiu, com a promessa de uma viseira à
disposição para o médico de urgência e de que poderíamos usar
luvas e avental simples sempre que quiséssemos. Cumpriu. A viseira
passou a ser a minha melhor amiga (é larga e abrangente o
suficiente, bem boa). Quanto a máscaras nunca as vi, nem sei se
existem fora da Unidade de Cuidados Intensivos.
We are the heroes of our
time... but we're dancing with the deamons in our minds... mas eu
nunca pedi para ser herói no meu trabalho(ou heroína, para o caso tanto
faz). Gosto de fazer bem o que me compete, discretamente, low-profile
até, sem nunca ter sido o julgamento ou apreciação dos demais a
guiar-me até agora. Mas mesmo sem estar armada em herói, quero a
minha máscara (e todo o restante equipamento adequado). É um
direito meu. É aliás um direito da sociedade. Para que eu possa
continuar, saudável, a exercer o meu trabalho. É, assim sendo, um
dever da administração hospitalar ou de quem neles manda. Um dever
para comigo, para com todos os profissionais de saúde e para com a
sociedade.
Tenho pouca paciência para ouvir
palmas vindas dos que habitualmente mal nos pintam. Palmas não me
protegem, lamento. E muito menos pachorra para músicas lamechas mas
cheias de likes em que a ideia principal é que “...mesmo
sem máscaras, se sacrificam pelos outros...” (cara amiga cantora,
fosse o teu namorado ou o teu irmão um médico negligentemente
exposto a uma infeção séria como a Covid-19 e aposto que a
mensagem da tua música seria outra). De todo, o sacrifício
escusado e inglório, por falta de material não fazia parte do
“contrato”! Numa situação onde haja gente para socorrer, a
primeira coisa a fazer é verificar que há condições de segurança
à atuação do socorrista. Já há uma vítima, não são precisas
duas.
A incompreensível falta de
preocupação com o assunto da parte de quem dá ordens (mas não dá
a face às gotículas) aliada ao facto de nos terem feito trabalhar
durante os primeiros dias protegidos apenas por palavras de incentivo
e uma palmadinha nas costas, fizeram com que o pandemónio mental
começasse cedo de mais. Temos que lidar com um receio que é quase
medo e com a falta de confiança em quem nos devia garantir condições
e material. Mas mais coisas virão, pois a festa ainda nem começou...
Desde então têm-se repetido as
discussões ao início de cada dia. Repetido. Iguais. Diárias.
Estéreis. Até à exaustão.
Existe um problema claro (falta
de máscaras adequadas) que não consegue ser resolvido de forma
convencional (o hospital não compra, não encomenda, não desencanta
algures, não inventa, não mostra ao menos que se preocupa). Há
então que procurar soluções menos convencionais. Houve quem se
dedicasse ao mercado negro (há alguém que conhece alguém que vai
receber um carregamento onde vêm máscaras P3, vamos comprar quando
chegarem?). Eu dediquei-me às lojas de bricolage e construção.
Máscaras descartáveis, independentemente do grau de proteção que
conferissem, estavam há muito vendidas até ao fim, sem previsão de
reposição. E máscaras reutilizáveis com filtro de partículas?
Sendo manifestamente mais dispendiosas talvez existissem ainda.
Passei a pente fino todos os estabelecimentos da cidade. Olhei para
todas as máscaras para carpinteiros, serralheiros, pintores.
Informei-me na internet sobre as características dos filtros,
tanto os disponíveis como os não disponíveis. Até que concluí
que, embora máscaras houvesse mesmo muitas, o tipo de filtro que eu
necessitava estava (obviamente) esgotado. Bom, vamos alargar a área
de pesquisa. Encomendar estava fora de questão pois não há nem se
entrega, segundo letras grandes e sublinhadas em todos os sites.
Mas talvez exista noutra cidade... mesmo tendo em conta que não
enviam, posso sempre ir buscar.
Após dois dias de averiguações
de écran encontrei o que queria numa cidade satélite de Estocolmo.
Aproximadamente 3 horas de carro para cada lado. Considerando o
tamanho da Suécia não era mau. Mais de 50 filtros em stock,
comunicavam na página. Eu só queria 10... continuo sem saber se é
muito ou se é pouco, mas é um número que me parece razoável...
Afinal de contas são para durar varias horas e custam cerca de 10
euros cada um... Eram dez da noite. Ofereciam a possibilidade de
efetuar a compra on-line, para garantir o produto. Por segurança,
foi o que fiz. E-mail e SMS de confirmação da compra, perfeito! Só
que no dia seguinte, escassos minutos após as sete da manhã,
inesperado e-mail e novo SMS notificavam que o produto já não se
encontrava em stock. E pling,
o meu dinheiro de volta, como se nunca tivesse saído da conta. Após
um telefonema onde me confirmaram que outro cliente se antecipara,
voltei à carga. Pesquisa em toda a Suécia, um único resultado
positivo. Numa loja de uma cidade da qual eu nunca ouvira falar havia
mais de 70 filtros disponíveis. Google maps, que me dizes?
Cidadezinha de fronteira com a Noruega, longe de tudo o resto, quatro
horas e meia de distância daqui. Provavelmente no limite do
razoável, se é que há alguma coisa de razoável neste relato. Nova
chamada para o número de informação ao cliente, dizem-me que vão
verificar. E mais uma vez, lamentamos, mas não há, era erro do
sistema, já estamos a corrigir.
Não há nada a fazer... vou ter
que ver doentes sem máscara! A não ser que ligue em pânico para
minha embaixada e peça para me repatriarem. Perco a casa, perco o
emprego e chegando a Portugal trabalharei em condições
provavelmente idênticas, mas em português e com salvas de palmas.
Não, de facto, não! Então, se há máscaras para quem cuida de
doentes que são confirmadamente Covid-19... o melhor é oferecer-me
para trabalhar apenas com esses doentes! Estou teoricamente mais
exposta mas pelo menos garantem-me equipamento (teoricamente mais
exposta porque aqui na Suécia a política atual é de não testar
doentes que não tenham critérios de internamento; como não se
testam, não são considerados positivos mesmo que tenham sintomas
muito sugestivos, que tenham contactos e sabendo que a doença está
em transmissão ativa na comunidade; não sendo positivos, não há
razão para que se gaste equipamento de proteção com eles, por
exemplo, no serviço de urgência; uma lógica um pouco retorcida,
mas que é a vigente). Ou então vou pura e simplesmente fazer como
alguns outros: fecho os olhos voluntariamente, não vejo notícias
nem leio sites sérios e espero que passe.
Nenhuma das opções era
realmente exequível. Ou todas o eram, mas nenhuma era razoável. Até
porque já está definido que chegando a haver caos hospitalar (que
se prevê mais para adultos do que para crianças) o colega húngaro
apoiará os intensivos, a colega espanhola, com vários anos de
experiência em Centro de Saúde apoiará a urgência de adultos e o
meu papel poderá passar por apoiar a realização de endoscopias
digestivas que não possam esperar, em adultos (na Suécia todos os
Gastroenterologistas são em primeiro lugar especialistas em Medicina
Interna e estarão portanto mais ocupados com outras coisas). É uma
atividade aparentemente menos perigosa. Porém tendo em conta que uma
endoscopia é um procedimento passível de gerar aerossóis mas os
doentes não são testados, então não nos vão disponibilizar
máscaras... pescadinha de rabo na boca, estamos na mesma!
Consultar eventuais stocks
de filtros de diversas lojas na internet passou a ser um
ritual diário. Quase obsessivo. Duas vezes por dia, alguns minutos
para confirmar que não há máscaras descartáveis nem filtros neste
país! E repetir.
Quase uma semana mais tarde,
contudo, encontrei filtros em Malmö. Mais de 40, dizia o site. Ah
ah ah, pensei eu, boa piada. Telefonema para desencargo de
consciência, sim, filtros de partículas, com certeza, reservo
quantos para si, é que isto está a sair muito depressa, pode vir
amanhã, não tem problema, mais que isso é que não. Dez filtros
reservados para mim! Dois minutos depois (um minuto e meio, talvez)
resolvo contudo fazer a compra on-line
dos filtros e da máscara reutilizável. Não vá o diabo tecê-las e
venderem os meus filtros reservados
ao primeiro que aparecer. Que
máscaras há muitas. O site
aceitou a compra, impecável! Mas
claro, ao fim de 10 minutos, e-mail e SMS de volta: a encomenda é
composta por 11 produtos dos quais 10 não se encontram disponíveis,
deseja cancelar? Arre, cancela! E
os do telefonema, será que
os guardaram mesmo para mim? Telefonei outra vez, à
noite, uns minutos antes da
loja fechar. É que até Malmö são mais de 4 horas de carro e eu
não queria conduzir em vão.
Faz agora 5 anos que fui a Malmö
a primeira vez. Estávamos na Suécia há uns meses, era quase Páscoa
e percebemos em cima da hora que o fim-de-semana tinha quatro dias.
Marcamos hotel e fomos armados em turistas. Até em inglês falámos:
na altura o à-vontade com o idioma não era o de hoje e a pronúncia
no sul da Suécia, na região chamada Skåne (Escânia, diz a
internet, já que Scania é marca de camiões e a transcrição
fonética literal resultaria deplorável em português) é tão
estranha e carregada, difícil de entender, que cheguei a pensar que
todos com quem falei eram alemães. Primeira paragem em Helsingborg.
Depois Lund, cidade universitária, histórica. Visita também a
Copenhaga, mesmo ao lado, 20 minutos de comboio sobre o mar. A
Pequena Sereia é realmente pequena e as pernas dos meus filhos ainda
não aguentavam caminhadas extensas. E Malmö, pois claro, terceira
cidade sueca, moderna, situada no extremo sul do país, com um extra
delicioso: o passeio junto ao mar faz lembrar o Parque das Nações!
O estreito de Öresund parece o Tejo, a ponte para a Dinamarca é
como a Vasco da Gama, a outra margem é na realidade outro país, mas
ao longe é semelhante. Os prédios de habitação têm grandes
janelas, varandas, muito vidro. E não falta sequer um edifício
icónico assinado por Santiago Calatrava, para completar a ilusão.
Há gaivotas, há aquele cheiro característico de beira-mar, há
gente a passear junto à água e até um par que quiosques de comes e
bebes. Foi o que me ficou de Malmö: que no sítio certo, pode
parecer Lisboa.
787. Setecentos e oitenta e sete
quilómetros.
Às 7 da manhã fiz-me à
estrada. Sempre para sul. Os primeiros noventa quilómetros em lenta
e irritante estrada nacional, condução menos descontraída mas
caminho conhecido. A partir daí, auto-estrada. Tentei ter pé leve,
mas as faixas de rodagem tão amplas, aquela sensação de espaço
aberto, sem fim, dificultaram-me a tarefa. O carro seguia à
velocidade máxima permitida no meu país, o que aqui significa
excesso. O dia estava bonito, céu sueco, azul e luminoso com nuvens
brancas e arredondadas, enfileiradas até onde a vista alcança, que
não perturbam o brilho do sol. Ainda assim em duas ocasiões apanhei
súbitos aguaceiros de neve, intensos mas de curta duração. Que
aborrecimento que há tanto para andar e ainda para mais já mudei
para pneus de Verão a semana passada. Paragem técnica aos 200km,
aproveita e estica as pernas. A paisagem de coníferas foi mudando
lentamente para bosques de árvores de folha caduca, despidas
inicialmente, mas já com promessas de verde mais próximo do
destino. Nos arredores de Malmö havia mesmo árvores em flor, que
saudades, onde eu moro tardarão ainda mais um mês! À beira da
estrada com frequência avistei corsas a pastar descontraidamente e
lebres de orelhas nervosas no ar. Todavia a minha mente estava noutro
lado.
O melhor caminho para a loja onde
me dirigia implicava contornar toda a cidade mantendo-me no
auto-estrada que segue depois para a Ponte de Öresund e sair na
penúltima cortada em território sueco. À medida que me aproximava
do destino, aproximava-me também da Dinamarca mas os cartazes
eletrónicos avisavam repetidamente e em diversas línguas que a
fronteira se encontrava fortemente condicionada. Claro, estou mais
que informada, a Dinamarca encerrou as fronteiras há semanas. Mas
ainda assim, ver é diferente. Ver a Europa fechada, contida,
confinada. Bastou uma porcaria de um vírus que ironicamente nem se
vê, para mudar tudo. Ainda no Verão passado, noutra vida, parece,
os meus filhos me perguntavam para que serviam os passaportes logo
seguido de para que serviam as fronteiras. Não no sentido de
identificar a pessoa e dividir países, mas no sentido prático da
coisa. Para quê tanta confusão se a Europa é tão simples e aberta
e podemos sempre ir onde queremos? Que trapalhada que isto se tornou!
Estacionei, um par de minutos
antes do meio-dia. Com alguma ansiedade entrei na loja. Gente aos
magotes, de luvas descartáveis nas mãos (máscaras não pois não
há), a mexer na face e logo nas prateleiras, cheguei a ouvir alguém
tossir, tudo às compras, num sábado de sol. Nas últimas semanas,
eu, tal como tantos outros indivíduos preocupados, tenho criado uma
certa fobia a pessoas. Especialmente se forem muitas de uma vez. Na
minha cidade não há problema: consigo caminhar ou pedalar uma hora
por uma ciclovia ou à volta de um lago sem me cruzar com mais de
duas ou três alminhas que se afastam tanto de mim como eu delas. E
se for a determinados supermercados em determinados horários o
panorama é semelhante. Por vezes envio selfies
ao meu irmão, Suécia em estado normal é mais vazia que Portugal de
quarentena, brinco. E ele, muito atinado, a retorquir que nas grandes
cidades não é assim. Bom, ali onde eu estava certamente não era.
Respirei fundo e avancei
rapidamente pelos
espaços abertos, direita
à secção
que me interessava. Filtros nas prateleiras nem um, confirmava-se.
Mas máscaras das que eu precisava também não! E
antes havia imensas em todo o
lado. Dei-me subitamente conta que as pessoas, provavelmente por
desconhecimento, compraram todas as máscaras disponíveis mesmo sem
filtros adequados, o que faz com se tornem inúteis! Visualmente
impressionantes, mas inúteis. Com o nervosismo a aumentar e na mão
dois pares de óculos de proteção,
bem ajustados e confortáveis por sinal, dirigi-me ao balcão
central. Telefonei ontem, por causa de uns filtros, expliquei. Um
saquinho com o meu nome cintilava
no cimo de umas estantes, os
dez pares de filtros lá dentro. E as
máscaras para
os encaixar, onde
encontro? Esgotadas desde ontem, explicaram-me. Respirei fundo outra
vez. Paguei os preciosos filtros (na pior das hipóteses vendo-os no
Facebook) e os óculos de
proteção
e saí para a rua. Não
sabia se me sentia irritada, satisfeita, idiota ou furiosa. Uma meia
vitória. Abri o telemóvel,
voltei às minhas pesquisas. As máscaras, que ainda há um par de
dias existiam em todas as lojas, agora restavam apenas em cinco lojas
em toda a Suécia. Uma delas ficava no caminho de regresso a casa,
outra numa cidade ao lado de onde moro e uma terceira a menos de duas
horas para norte. Há-de resolver-se. Que desalento... Vamos embora.
E nessa altura, ali no parque
de estacionamento, recebi um
SMS inesperado:
Caro cliente, não se esqueceu de levantar a sua encomenda na loja de
Malmö? Vad? A
minha encomenda? Aquela que cancelei ontem porque não estava
disponível? Voltei rapidamente atrás, atabalhoei
a história, atrapalhei-me com o idioma, não percebi até à quarta
repetição
o que o funcionário me perguntava naquela pronúncia esquisita da
Skåne: o número da encomenda? Qual
número da encomenda?! Mas eu apaguei tudo, porque a cancelei. O
rapaz olhou para mim e abanou a cabeça,
quase impercetivelmente. Olhou depois para uma prateleira aberta ali
ao lado. Eu olhei também e... inacreditável! Ali estava uma
caixinha com uma máscara,
a última, com o meu nome pendurado
por fita-cola! Quase saltei
lá para dentro! Agarrei a máscara e só dizia que podia mostrar a
minha identificação
se ele quisesse, para confirmar que era mesmo eu. Agora a cara do
sujeito já não deixava dúvidas, malucos há muitos e eu era mais
um!
Passados
dois minutos já estava cá fora outra vez, uma sensação
de alívio, de missão impossível cumprida e um tesouro improvável
no porta-bagagens.
Já
descontraída
e finalmente com fome, estava na altura de verificar se Malmö ainda
era como me lembrava! A zona
ribeirinha não desiludiu,
exatamente o engano que eu esperava. Estacionei
o carro, um pequeno balúrdio por 40 minutos e procurei uma pedra
grande confortável à beira da água. A meia dúzia de metros dali
passeavam adultos com crianças
pequenas, havia quem fizesse desporto com os seus cães, casais
idosos com os seu andarilhos. Fiz
o meu piquenique, tirei as minhas selfies
e tive
a visita de um cão sem trela com ar curioso mas que me pareceu
muito desiludido com as cascas de laranja que lhe mostrei. De
uma forma muito sueca trouxera o meu termo com café e
uma garrafinha de leite frio para misturar. Bebi
dois macchiati
fingidos, ainda bem quentes. Voltei
a respirar fundo um par de vezes, guardei as minhas coisas e fui-me
embora.
Nos
primeiros quilómetros de
volta a casa continuei a
cismar
sobre a Europa estranha onde me encontrava. Dei
conta que em Helsingborg ainda havia ferries
a cruzar o estreito, no
local onde a Suécia e a Dinamarca estão mais próximas. A travessia
dura pouco mais de 10 minutos e não carece de marcação,
é chegar, pagar e andar. Partem
ferries
até 6 vezes por hora, de ambos os lados, nas horas mais movimentadas
e embora com menos regularidade, não se suspendem durante a noite. O
tráfego de passageiros e mercadoria é constante. E como em todos os
ferries
internacionais na
Escandinávia (mesmo que só
demorem
10 minutos) há vendas
a bordo de álcool, tabaco e outros produtos a preços
muito mais convidativos que em terra, tem
é que se escolher depressa. Dei
por mim a pensar sobre quem iria nos ferries
naquele dia. Trabalhadores transfronteiriços?
Camiões de mercadorias? Quem?
À distância de uma pedrada, como se diz por aqui, contudo tão
inacessível.
De
resto, a viagem
decorreu de forma linear. Parei
a meio para mais um café e esticar as pernas como deve ser. Entrei
em casa pelas 18h. Selfie com
V, dois dedos
bem esticadinhos no ar, o
saco pendurado no cotovelo,
subir as escadas e atirar a tralha toda para um armário com espaço
livre.
A
tralha que o meu empregador tinha obrigação
de me garantir. A tralha que é provavelmente a minha melhor hipótese
de defesa contra um vírus perigoso. A tralha, que para além do
valor monetário (que neste momento pouco importa) me custou mais de
nove horas de condução
e certamente
mais uns escusados cabelos brancos.
Mas
depois desta viagem, que foi tudo menos razoável, sinto-me de facto
mais calma, o stress
diminuiu. Posso continuar na praia, a ver o tsunami aproximar-se,
enquanto ninguém se mexe.
Texto escrito a 8/4-2020
A viagem relatada realizou-se a
3/4-2020