quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Sankta Lucia, colonoscopias e dinossauros

Na Suécia não há presépios. Como, não há? Não há, pronto! Em minha casa há dois, mas a minha casa não conta. Se eu quiser comprar um presépio na Suécia talvez (talvez!) o encontre nas semanas imediatamente anteriores ao Natal, num canto escuro e descuidado de uma loja pouco afamada. Caro e feioso.
Em minha casa tenho, portanto, dois presépios. Um em cerâmica, pequeno, trazido de Portugal, peca única levemente estilizada, de traços arredondados, onde Maria e José convergem para o Menino. E outro comprado na Alemanha, na loja de recordações de uma Catedral, minúsculo, com as figuras tradicionais (em plástico branco a imitar um qualquer material mais nobre e caro, marfim talvez) montadas cuidadosamente dentro de meia casquinha de noz. Qualquer um deles é bonito.

O Natal na Suécia começa no primeiro domingo do Advento, com velas em casa e candeeiros à janela. Ninguém sabe bem o que é o Advento enquanto conceito religioso. Mas todos sabem que é tempo de pendurar estrelas, colocar as quatro velas no castiçal especial para acender uma por semana e claro, iluminar todas a janelas com candeeiros grandes, bonitos, festivos. Na Suécia ninguém tem estores e cortinas são poucas. Atendendo a que em Dezembro o sol nasce por volta das nove e se põe pelas três da tarde (isto no sul do país) há que admitir que o efeito é bonito e acolhedor. No meio da escuridão olhar em volta e ver tantas janelinhas iluminadas. Suponho que a maioria das pessoas tenha tomadas com temporizador, daqueles que fazem com que os candeeiros liguem e desliguem automaticamente. Eu ligo os meus dois candeeiros pequeninos quando chego a casa, se me lembrar, já com duas ou três horas de noite e desligo-os quando me deito, sem esperar pela manhã. Depois vem o segundo domingo do Advento, acende-se a segunda vela. E antes do terceiro domingo e da terceira vela, vem um dia extraordinário, o dia de Santa Luzia, Sankta Lucia. A importância do dia é tal que as crianças na escola não tem festa de Natal mas sim festa de Sankta Lucia.



No fim dos anos 80 e inicio dos 90 passávamos o Natal nas Sarzedas (uma aldeia minúscula, de onde o meu pai é natural, a um quarto de hora de carro de Pedrogão Grande, de onde é a minha mãe). Dormíamos na casa de Pedrogão desde o dia 23, pelo menos. Assim, no dia 24 bem cedo o meu irmão e eu acordávamos e ligávamos a velha televisão a preto e branco, para ver a emissão especial infantil dedicada ao Natal. Ali a meio da manhã, já na altura em que a nossa mãe voltava da rua com pão fresco e cheiro a Natal e a nossa avó tinha acendido a lareira da cozinha com lenha das oliveiras desbastadas no último Outono, os desenhos animados eram interrompidos por um filme de meia hora dedicado a explicar o Natal no Norte da Europa. Invariavelmente era sobre as celebrações de Santa Luzia. Desses programas antigos recordo um grupo de crianças de cabelos compridos e loiros com vestidos brancos até aos pés, velas na mão ou na cabeça, que caminhavam na neve, no escuro e cantavam numa língua incompreensível, mas onde se percebia claramente a repetição de Sankta Lucia, Sankta Lucia. Iam de porta em porta pelos campos e comiam bolachinhas. Tirando o facto desta realidade se passar umas duas semanas mais cedo que o retratado e de eu ainda não ter visto assim tanta neve, esta ideia que me ficou do Natal no norte da Europa não anda longe da realidade.

O dia de Santa Luzia comemora-se a 13 de Dezembro. Sem ir espreitar ao Google não há muito que eu saiba dizer sobre o assunto. Era, ao que parece, originária de Itália, não aceitou converter-se ao paganismo e passou a estar de alguma forma relacionada com a luz, no sentido literal e religioso figurado, a representá-la. Comemora-se na Suécia não como festa católica ou religiosa mas de forma tradicional e popular (se bem que cada vez mais a tradição se resuma a comer pepparkakor, as bolachinhas de gengibre e a beber glögg, originalmente vinho quente com especiarias mas que também pode ser feito com sumo de maca e que se tem tornado insípido na sua versão não alcoólica, principalmente se comparado com as receitas mais saborosas de países vizinhos).

Nas lojas suecas, além de árvores de Natal e enfeites adequados a todos os gostos e bolsas, vende-se então o chamado Luciatåg, procissão de Santa Luzia numa tradução livre, se bem que no sentido literal o significado de tåg seja comboio. Tal como nos países mais a sul se vendem presépios, aqui há este Lucitåg que consiste num conjunto de figurinhas de crianças, em cerâmica, geralmente cinco, com ar simpático. A primeira figura, a principal, é Sankta Lucia. Cabelos longos e loiros, vestes alvas até aos pés, uma fita vermelha ou prateada à cintura e claro, a coroa de velas acesas a toucar a cabeça, a iluminar a escuridão e a trazer a luz. Mãos postas como que em oração e rosto sereno e doce. Depois segue-se outra menina vestida de branco mas é menos luminosa pois traz apenas uma vela na mão. Há o Stjärna Gosse, o rapazinho da estrela, um menino com idêntica indumentária porém complementada com estrelinhas douradas no peito, no chapéu pontiagudo e na varinha magica levantada no ar. Há o Pepparkaksgubbe, o rapazinho biscoito de gengibre, vestido com calças, casaco e chapéu castanho debruados a branco a fazer lembrar enfeites de açúcar glace. E por fim o Pai Natal. Não era mesmo o Pai Natal, era só um duende normal, um tomte da tradição popular sueca. Mas com o passar dos anos transformou-se no Jultomte, o Pai Natal. É bem bonito, o comboinho de Sankta Lucia.



E se me perguntarem do que me lembro do dia 13 de Dezembro de 2017, dia de Santa Luzia? A música de sempre, claro. Com colonoscopias e dinossauros!

O dia de Santa Luzia amanheceu branco. Quando começou a clarear, passava das oito da manhã e continuava a nevar. Os meus filhos já tinham ficado nas respetivas escolas, meia hora mais cedo do que o habitual e eu já tinha conduzido os quase 50km até outro hospital noutra cidade, onde tenho ido uma vez por semana para aprender a fazer colonoscopias. A estrada estava escorregadia e o facto de não estar frio (sim, estava aquele calor nórdico, meio grau positivo) fazia com que de vez em quando a neve meio derretida que escorregava dos tejadilhos dos carros que circulavam em sentido contrario fosse projetada para o meu vidro. Já depois de ter estacionado e de ter atravessado a papa de gelo à altura do tornozelo que só parava à porta do hospital, troquei de roupa, conversei um pouco com o meu coordenador e percebi que, mais uma vez, os planos do dia para mim seriam “olhar” em vez de “fazer”. Suspirei, decidida desta vez a não continuar naquele local, cheio de boas e acolhedoras intenções, mas onde tudo se processava a um ritmo exasperantemente lento. Revi mentalmente as alternativas de aprendizagem que tinha e como no dia seguinte as iria expôr assertivamente ao colega responsável pela minha formação. Enquanto eu estava absorvida pelos meus pensamentos juntou-se a nós uma enfermeira que no seu sueco rápido e gutural falou do dia de Sankta Lucia numa algaraviada que incluía pingue-pongue, glögg e a cave do hospital. Não percebi à primeira (apesar de já cá estar há três anos e troca o passo, tudo aquilo que vá além da linguagem estritamente médica leva ainda alguns minutos a processar). Mas obedientemente segui atrás dos outros.
Descemos até à cave, caminhamos por corredores largos e baixos por cujos tetos correm inúmeros canos, condutas e fios elétricos, que por sua vez faz com que pareçam ainda mais baixos e labirínticos. Ao longe uma árvore de Natal de plástico barata, com bolas vermelhas e luzes coloridas a piscar. Chegámos a uma sala larga de um branco recente e limpo, uma das paredes revestida a prateleiras onde a nota dominante era literatura médica ultrapassada, própria dos anos em que o UpToDate, PubMed ou mesmo uma boa googladela não eram ainda de acesso universal. Havia também um rádio, onde Mariah Carey, John Lennon, Wham e outros debitavam circularmente as mesma musicas natalícias de amor fraterno, não fraterno e de paz. A um canto uma mesa com o inevitável glögg quentinho e sem álcool, as pepparkakor e os skumtomtar, gomas cor de rosa e brancas em forma de pai Natal. E no centro da sala uma enorme mesa de pingue-pongue, verde-escura, nova e apetitosa, mais as respetivas raquetes e bolas. Calhou-me a mim e ao outro médico sermos os primeiros a jogar. Ele tinha prática, mas fui-me aguentando. Depois foram as enfermeiras experimentar o novo divertimento enquanto nós mordiscávamos uma bolacha. Entretanto apareceu a bibliotecária. Uma mulher pouco mais velha que eu, algo mais pesada que eu, tão cabeluda como eu. Cabelo espesso, pintado de negro, longo, com vontade própria à conta de não ser liso e andar solto (já o meu anda devidamente controlado por um elástico espiral transparente e tem umas madeixas mais claras que se destacam na massa castanha escura). Camisola de malha preta, mangas compridas. Saia preta rodada, bem abaixo do joelho. Meias e sapatos pretos. O conjunto completava-se com um mega colar de pérolas de plástico pretas e uma rosa artificial preta. A bibliotecária com ar de bruxa (nas palavras do meu colega alemão, pois um sueco nunca diria tal coisa e eu já aprendi que nunca nos devemos referir aos aspeto físico dos outros mesmo que se seja mais fácil identificar determinada pessoa por causa do seu espampanante cabelo rosa-choque ou que apenas queiramos fazer um inocente e desinteressado elogio) deslizava rapidamente numa trotineta amarela de três rodas, meio de deslocação habitual nos hospitais suecos. Trazia no cesto mais livros fora de prazo para depositar. Não era bonita nem feia, era simpática e deixou-se ficar a conversar com a responsável pelas comemorações da Lucia com uma mesa de pingue-pongue, enquanto nós nos escapulíamos discretamente para o nosso departamento.
Já com o doente deitado e sedado à nossa frente, ainda sob influencia do surrealismo de toda a situação que tinha acabado de experimentar ou talvez iluminada pela santa do dia, perdi a vergonha e expliquei ao meu colega, com os melhores argumentos que consegui, que queria “fazer” qualquer coisa em vez de “olhar”. Consegui negociar cinco minutos cuidadosos no inicio do procedimento. Esse curto espaço de tempo correu afinal correu bastante bem para o meu lado, sob as indicações atentas do meu colega. Percebeu-se entretanto que o doente estava mal preparado ou seja, não tinha tomado laxante suficiente e havia cocó por todo o lado. Literalmente. O que anulava a possibilidade de se fazer um colonoscopia diagnóstica adequada. Via-se menos mucosa que cocó. Aproveitou-se assim para, enquanto se confirmava de forma bastante sofrível a ausência de inflamação na mucosa cronicamente doente, investir um pouco na minha aprendizagem. Depois dessa primeira colonoscopia nesse doente ainda fiz mais duas, com a ajuda do meu colega. Acabei o dia de trabalho satisfeita e com vontade de voltar, mas com uma terrível dor de ombros, típica de quem está a aprender a lidar com um tubo dentro de outro ser humano e fica tenso e rígido pela falta de prática. Ressoaram-me nas mente as as sábia e irónicas palavras do meu marido para o meu filho uns dias antes: “A mamã passa o dia a ver doentes a dar puns e pagam-lhe para isso!”.
Assim se explica como associo o dia da luminosa Sankta Lucia a colonoscopias.

E os dinossauros, de onde vêm? Bom, o meu filho, 5 anitos, decidiu que na festa da escolinha queria ser o Stjärna Gosse, o rapazinho da estrela. Na véspera à noite procurei a túnica branca que comprara dois anos antes para a irmã e constatei que tinha uns bons 20 cm a mais. O tempo era curto e o sono era muito, pelo que improvisei uma bainha com agrafos. As estrelas, depois de recortadas de um saco de papel acastanhado e brilhante, foram cuidadosamente colocadas no peito do vestido com fita-cola transparente. O chapéu bicudo foi montado e a estrela grande encaixada na ponta da varinha. Ficou muito bem e pude ir dormir sossegada. Só que toda a noite sonhei que o meu filho mudara de ideias e já não queria ser o rapaz da estrela, mas sim o rapaz dos dinossauros. Sim, dos dinossauros, coisa nunca vista! Seria uma estreia, num Luciatåg, mas quase aposto que nesta Suécia onde a tolerância para com tudo e todos é a regra, isso apenas seria encarado como uma original e inovadora ideia pelas professoras da escolinha. Só não houve tolerância quando há coisa de um ano uma conhecida cadeia de lojas de roupa fez estrela do seu anúncio de Natal um rapazinho amoroso, de pele escura, vestido de Lucia, de branco e com velas na cabeça. Aí a tolerância só se manifestou depois de o anúncio ter sido retirado. Enfim, passei toda a minha noite sonhada a colar dinossauros verdes em túnicas brancas, os dinossauros teimavam em cair, em não querer ficar no lugar, o meu filho a choramingar que queria ser o menino dos dinossauros, queria dinossauros até na mão e no chapéu e eu angustiada sem o conseguir ajudar.
Daí os dinossauros.



E depois do meu primeiro dia de colonoscopias com cocó e de subconscientes invadidos por dinossauros, a festa da escola no dia de Sankta Lucia, como foi, afinal?
Ute är mörkt och kallt... Lá fora está escuro e frio, assim começa a conhecida canção... Como esperado, a festa que decorreu pelas cinco da tarde (ou da noite...) no pátio coberto de neve, foi acolhedora e luminosa. A noite fria aquecida pelas vozes afinadinhas de duas dezenas de crianças. As meninas vestidas de Lucia, os meninos de biscoito de gengibre ou pai Natal. O meu filho era o único rapazinho da estrela e destacava-se por isso. Tal como na canção, onde depois surge a luz que é quente, no fim da festa serviu-se... o quê? Pois claro, glögg e pepparkakor. Já os esperados dois dedos de conversa acontecem apenas entre aqueles que não são suecos. Na altura de ir embora, bolacha ainda na boca pois a hora da aula de patinagem no gelo já lá ia, uma mãe que me tinha cumprimentado ao longe veio ter comigo. Sou médica de uma das filhas, no hospital. Nenhum sueco me viria falar de trabalho numa festa da escola. Se viessem eu responderia como médica, claro está, mas eles não sabem. E se o soubessem de igual modo não o fariam. Esta mãe não é, evidentemente, sueca. Ainda assim limitou-se a quebrar as regras não escritas perguntando apenas educadamente se eu lhe poderia telefonar quando estivesse no hospital. Como lhe assegurei que o faria, abriu-se num sorriso, explicou-me em duas frases curtas o que a preocupava, voltou a agradecer e desapareceu na multidão.


A versão breve mas cristalina da Sankta Lucia cantada pelos meus filhos acompanha-me de cada vez que conduzo com escuro e frio (o que não é assim tão invugar, neste país), antes de me perder noutros pensamentos. É algo que não existia em Portugal, nem faz parte da minha cultura, embora a minha memória tenha ido repescar lembranças antigas e mal enquadradas. Mas a gente vai aprendendo que o glögg afinal às vezes sabe bem e que apesar de não haver presépios há outras coisas que se também se entranham. Tenho pena que os meus filhos, apesar de saberem cantar o Olhei para o céu, estava estrelado... não o façam da forma espontânea com que trauteiam as musicas de Natal suecas. Onde é que eu quero chegar com isto? A lado nenhum. É apenas um relato enviesado e pessoal de um dia 13 de Dezembro, que não é sequer passível de qualquer interpretação. É apenas uma descrição do que aconteceu...