quinta-feira, 6 de julho de 2017


A casa dos meus avós

Quero falar sobre a casa dos meus avós.

Na casa dos meus avós entra-se por um portão verde e largo. Talvez já não seja verde, talvez o meu avô o tenha pintado de outra cor algures no tempo. Mas é nessa cor que me lembro dele. Há um muro alto que não deixa ver para dentro do pátio e acima do muro a latada de folhas grandes e frescas protege ainda mais das miradas indiscretas. Como se naquela aldeia, naquele lugar daquela aldeia, vá alguma vez passar alguém que não seja conhecido de todos e por todos e não saiba de cor o que há dentro de cada quintal. 

 À direita do portão há uma trepadeira com umas flores brancas, folhinhas miúdas, colada ao muro. Depois do fim do muro não há mais aldeia. Só há casa da prima Alzira, que morreu velhinha e solteira há já tantos anos, coitada. No pátio de casa dela havia um forno e quando se cozia pão a minha avo também lá ia. E eu, curiosa, só não acompanhava se não me deixassem. No pátio havia patos a debicar restos de ervas. Eu não engraçava com eles porque tinham bicos grandes, não tinham medo de mim e eu só estava habituada às tontas das galinhas dos meus avós. 

Para lá dessa última casa há um carreiro estreito, entre muros de xisto, por onde só consegue passar gente a pé, talvez alguns animais presos por cordas. É ladeado por silvas, tojos e outras ervas que não picam, por isso nunca lhes soube o nome. O carreiro desemboca numa tapada ampla, luminosa, em vários tons de verde e castanho, onde há uns carvalhos velhíssimos, enormes, com umas pernadas compridas, limpas de ramos secos ou folhas inúteis, que quase tocam o chão. O meu irmão e eu montávamos a cavalo nessas pernadas e balançávamos até cansar... para cima, para baixo, para cima, para baixo. Um dia uma das pernadas partiu, o meu irmão caiu, bateu com a cabeça numa pedra coberta de musgo e teve uma reação esquisita, com tonturas e alterações transitórias da visão que eu hoje em dia consigo explicar através de nomes científicos complicados, mas na altura só me deu muito medo. Recuperou depressa, esquecemos o episódio e voltamos a brincar nos ramos dos carvalhos. 

Depois dessa tapada... bom, há mais caminhos. Uns vão dar às hortas que os meus avós cultivavam, outros a silvados que no verão se enchem de amoras grandes, pretas e doces e há caminhos que não sei onde vão dar. Nas hortas os meus avós cultivavam de tudo um pouco... ali na Tapada da Fonte lembro-me de grão de bico. E mais abaixo onde era mais fácil o acesso à água, uns pés de feijão, talvez cebolas, alfaces tenras. Entre as hortas há espaços cobertos de erva macia onde pastam os animais, se ceifa erva para os coelhos e crescem morangos bravos. Estes nunca foram grande coisa em termos de sabor, mas era divertido procura-los e comê-los. Noutra horta, nos Covões, era milho e batata que se semeava. No centro da horta o poço, com o picoto para tirar água à custa da força de braços do meu avô. À beira do poço a pereira, que tem tanto de grande como as pêras têm de pequenas e abundantes. Muitas vêm bichadas, mas são tão boas que vale a pena o trabalho de escolher as mais sãs para trincar. Mais acima há uma figueira, que só dá figos em Setembro. Do outro lado a cerejeira e, já quase a entrar na floresta, os castanheiros. Enormes, poderosos e produtivos. Ah, e oliveiras, claro, mas essas estão por todo o lado. E videiras em cada muro são também uma constante.

Deixando as hortas e voltando ao portão. Pois, abrindo o portão, há um pátio. À esquerda ficam as escadas que sobem para a casa, para o primeiro andar. A parte de baixo da casa, nesta zona do país chamada de loja, era onde ficava a oficina de sapateiro do meu avô, com o seu cheiro a couro, a graxa, um monte de ferramentas fascinantes mas perigosas e sapatos esquecidos. Noutra divisão da loja armazenavam-se as colheitas. Batata em prateleiras, milho em arcas, potes com azeite, pipas de vinho, feijões secos em sacos de chita antigos e ultimamente uma arca frigorífica com bifes, carapaus e outras coisas congeladas. Ah, e os presuntos, que cheiravam tão bem, besuntados em pasta de pimentão e pendurados no teto, quando ainda se criava o porquinho. Em frente, no pátio, os currais das cabras, cabritos e cabritinhos. Fazíamos touradas com os cabritos e sacas vazias. Os cabritos, tão pequenos, só queriam brincar. Investiam contra nós e nós, miúdos pequenos e assustadiços, fugiamos escada acima, tão patetas. Mais à direita o curral do porco, mas esse já há muitos anos deixou de ter inquilino. E ainda mais à direita, debaixo do palheiro, duas ou três gaiolas para coelhos. Eram tão bonitos e macios, os coelhinhos. Desde que eles nasciam sabíamos bem que um dia seriam guisado, coisa que nunca nos fez confusão, mesmo sendo eles tão fofinhos. Lá em cima, no palheiro, havia folhagem de milho seca ao sol para dar aos animais no inverno. Picava se rebolassemos nela mas cheirava bem. O fim da rua mesmo ao lado do palheiro é iluminado por um velho e desconjuntado candeeiro do município, junto ao qual voam traças e morcegos à noite. Entre a casa e o palheiro há uma varanda, que corresponde ao teto dos currais. Aí estão os vasos de flores da minha avó, os temperos para a comida em canteiros de cimento e as cadeiras onde ela se sentava com o meu avô a ver quem passava na estrada mais além. Confortavelmente, em cadeiras de pau, por baixo de uma latada de uvas morangueiras.



Voltando ao pátio e àquilo que fica do lado esquerdo, ao lado da escada. Há dois metros de caminho que dá para o poço. O poço tem um motor elétrico que se liga quando se quer tirar água e está coberto por cima, pois onde há crianças todos os cuidados são poucos. À frente do poço há uma hortênsia. Grande e farfalhuda, generosa nas flores de um azul deslavado, as únicas que consegue produzir. Claro que estou farta de ver hortênsias grandes, pequenas, muitos bonitas, pouco bonitas, de todas as cores. Mas aquela é especial, já lá estava quando eu nasci, a dar flores para enfeitar jarras. Tantas vezes tentei laçar a hortênsia, à moda do far west, apanha-la como se fosse um animal perigoso. Acabava por apenas lhe arrancar partes de folhas que ficavam irregularmente rasgadas e mais tarde ouvir a minha avó resmungar que não percebia que bicho lhe andava a dar cabo do jardim. Ao lado da hortênsia há um arbusto chamado arruda. É bonito mas cheira mal. Um dia, teria os meus sete ou oito anos, perguntei à minha avó se se podia fazer chá de hortênsia. Disse-me que não. Depois perguntei se se podia fazer chá de arruda. Disse-me que sim, mas que não era bom e desmanchava os bebés nas barrigas das mães. Por precaução nunca mais me aproximei da arruda e passei a contornar o poço pelo outro lado. 

Tem que se contornar o poço para alcançar o tanque de rega, onde se armazena a água antes de a utilizar nas couves e nos tomates do quintal. O tanque tem mais de meio metro de profundidade e pelo menos dois metros de comprimento. Quanto à largura começa bem, mas depois torna-se um bocado enviesado. Em suma, era uma piscina olímpica sem o cheiro a cloro. Do outro lado do poço, para lá das escadas, está o galinheiro. Era outro divertimento, abrir o portão das galinhas, deixá-las vir para o pátio e depois tentar voltar a enxotá-las para a capoeira antes da minha avó se zangar a sério.

Quem entra no pátio e segue a direito (sem subir as escadas, sem ir para o tanque, sem ir aos coelhos... ) percebe que há um pequeno declive, uma inclinação ligeira, ali à porta da oficina do meu avô. A memória mais antiga que tenho é nesse local. Eu teria dois anitos, era 1981, talvez. A minha avó fez um banquinho com uns pneus e outras tralhas, sentou-me nele e puxou-nos por essa rampa. Varias vezes, de seguida, e eu a rir à gargalhada enquanto descia, mesmo junto à minha avó. Há uma fotografia desbotada tirada pelo meu pai que ajuda a compôr esta minha memória. Mas a lembrança de como era divertido é bem real.

A casa, foi o meu avô que a construiu, antes de se casar com a minha avó. O futuro sogro ajudou-o. Ao contrário do que era costume na época, só tinha aquela filha e um rapaz que viria a ser padrinho do meu pai e que já andava por Lisboa.

A casa é simples. Entra-se para um espaço tipo sala comum, onde se come, pois tem uma mesa e varias cadeiras, mas onde está também a televisão e o frigorífico. Não há sofá mas há uma arca vermelha, antiga, pesada, que deve ser mais velha que o meu pai e tem lá dentro, aconchegadas sobre uns cobertores velhos, umas roupinhas que ele usou quando era bebé. Não sei se lá há está mais alguma coisa interessante, pois só me lembro de a minha avo abrir arca numa ocasião. Mas em cima da arca e das suas almofadas podiam-se sentar três de uma vez. E muitos natais, de pé em cima dessa arca, o meu irmão e eu cantámos e dançamos, fizemos os nossos pequenos espetáculos que culminavam em discussão entre os dois artistas. 

Na cozinha, pequena e fusca, há um armário baixo em cuja gaveta se guardava um pratinho com sardinhas gordas fritas em azeite. Na lareira, que ali se chama fogueira, a minha avó fazia por vezes, numa forma que se poisava nas brasas, uns bolinhos espalmados tipo waffles, em forma de tapetes, mas em massa de pão de ló. Eram bem bons. Desse tal tal espaço onde se come passa-se também para a sala propriamente dita, que não serve para nada pois nunca é usada. Tem uma mesa e umas cadeiras mais bonitas, uns sofás frios, escorregadios, que rangem quando a gente se senta neles e uns móveis com loiças das bisavós. Por cima de um dos móveis fica o cantinho das fotografias e dos santinhos. Sem ordem nem critério definidos eu e o meu irmão misturamo-nos com a N. Sra. de Fátima, o Dr. Souza Martins, uma garrafinha vazia que teve água benta de Lourdes e outras coisas menos ou mais importantes. Da sala passa-se para os dois pequenos quartos com camas de ferro. Um, dos meus avós, com mantas antigas e coloridas. Outro, que era do meu pai e onde eu dormia quando lá ficava nas férias de verão ou ocasionalmente nalguma sexta feira de inverno. Do outro lado da sala, oposto às portas dos quartos, num canto, está uma arca preta. Aí estão coisas importantes da minha avó, as suas pequenas preciosidades. Não faço ideia o que são. Talvez lençóis de linho nunca usados. Talvez toalhas bordadas. Mas mesmo ao cimo, a primeira coisa que se encontra ao abrir a arca, é a caixa de musica. Uma caixinha preta envernizada, tão bonita. Talvez tenha também umas flores pintadas, já há uns anos que não lhe mexo. Uma chavezinha pendurada num baraço branco e desfiado roda na fechadura e a tampa abre. Levanta-se uma bailarina que começa a dançar, sempre à roda, sem se cansar. E soa uma melodia suave. Isto se alguém tiver dado corda à caixa, pois claro. A tampa da caixa tem no interior abaulado pequenos espelhos colados sequencialmente que dão a sensação de espaço infinito, para que a bailarina de folhos cor de rosa e braços no ar não se sinta sozinha. A caixa de música foi enviada pelo padrinho do meu pai à minha avó. Comprada em Moçambique e antes disso vinda da China, quando as coisas chinesas eram de qualidade. Sempre que ficava em casa dos meus avós ia piscar o olho à bailarina. Não era difícil adivinhar que sendo eu a única descendente feminina da família, quando eu fosse grande seria para mim.

No quintal atrás da casa, vê-se das janelas, há as omnipresentes oliveiras e videiras. Há uma laranjeira deprimida (as laranjas são bem bonitas, mas sempre foram secas e pouco doces), há outra figueira, um belo diospireiro, uma macieira e um abrunheiro. O abrunheiro ou ameixoeira, não sei bem, é a árvore que fica mais perto da porta do quintal, mesmo ali ao lado da varanda. À sua sombra a minha avó plantava dois regos de morangueiros para os netos mais um par de regos de flores, donde recordo uns cravos franceses amarelo-alaranjados. O abrunheiro tem uma capacidade de produção de fruta impressionante. As ameixas são vermelho escuras, doces, mesmo saborosas e há uma escada ali à mão. Por isso sempre foi fácil subir lá para cima e comer até fartar. Quentes e diretamente da árvore. Valia a pena o incómodo seguinte. Isso e as uvas morangueiras em Setembro.

E pronto, é assim a casa dos meus avós.



Na realidade, a ultima vez que lá fui foi há dois anos. Tínhamos feito 80 km para uma tarde bem passada na praia fluvial do Mosteiro, ali tão perto. Sempre que íamos ao Mosteiro ou a outro local das redondezas passávamos depois nas Sarzedas. A minha filha tinha sete anos e o meu filho quase três. Bem olharam para as uvas, mas era Junho e estavam verdes. Acabaram a fazer caretas debaixo de um guarda chuva velhíssimo, amarelo, com ursos azuis, que a minha avó me comprou quando eu era do tamanho deles. O meus avós sentados na arca vermelha. O meu avô Álvaro a perguntar se a vida me corria bem na Suíça (ao fim de umas vezes deixei de o corrigir e de explicar que era Suécia) enquanto insistia com o meu marido para beber mais um copo de vinho caseiro. A minha avó São com ar algo confuso, fazendo perguntas cautelosas e pouco pessoais. A casa estava igual ao que eu me lembrava. Os meus avós mais velhos, a minha avó já não conseguia chegar com a mãos ao chão sem dobrar os joelhos, coisa que eu nunca consegui mas que ela fazia sem dificuldade aos 80 e tal anos e o meu avô com menos dentes. Quando um mês depois voltamos a Portugal para as férias de verão, já não fomos às Sarzedas. A minha avó tinha adoecido de vez e o meu pai foi lá buscá-los, aos dois. Estando os meus avós na mesma cidade que eu não havia razão imediata para voltar às Sarzedas e olhar para uma casa vazia, uma gaveta sem sardinhas, um pátio com ervas. Devia ter lá ido buscar a caixa de música, mas não o faria com os meus avós vivos. A minha avó morreu passado pouco tempo e o meu avô um ano depois. Tinha planeado lá voltar neste Natal, mas houve demasiadas outras coisas a fazer. Na Páscoa estava eu cansada de mais, queria apenas aproveitar os meus dias de pausa sem pensar em nada. Este ano não fui a Portugal em Junho, como fiz doutras vezes, porque os meus pais me vieram visitar. Ainda bem...

Ardeu tudo. Não sobrou nada. A hortênsia mais velha que eu, a arruda que desfaz bebés, os currais que tinham partes em madeira, são apenas espaços vazios e sujos de cinza. As videiras, o marmeleiro, o abrunheiro, o diospireiro, as figueiras, os castanheiros, o azevinho, a pereira. Os poços lá estarão mas não há como tirar água deles. Não há rolas, cucos nem corujas. A arca preta ardeu, a sala, os quartos e a minha caixa de música. Não há nada verde. Nada.

Da minha família não morreu ninguém, no incêndio. Quer dizer... aquela senhora amiga do meu pai e aqueles primos da casa antes da fonte, de quem eu mal me lembro e outros que eu só conhecia de nome. E apareceram umas pessoas simples lá da aldeia a chorar na televisão, apareceu também o meu padrinho, que mora na cidade, não morreu por pouco e que se sabe queixar com termos jurídicos adequados.

O meu irmão já lá foi, num dia de sol. Parece que a aldeia está escura, vazia de pessoas, de animais, de vida. Sobrou apenas a arca vermelha, disse ele.

Portanto... foi assim a casa dos meus avós.