A casa dos meus avós
Quero falar sobre a casa dos
meus avós.
Na casa dos meus avós
entra-se por um portão verde e largo. Talvez já não seja verde,
talvez o meu avô o tenha pintado de outra cor algures no tempo. Mas
é nessa cor que me lembro dele. Há um muro alto que não deixa ver
para dentro do pátio e acima do muro a latada de folhas grandes e
frescas protege ainda mais das miradas indiscretas. Como se naquela
aldeia, naquele lugar daquela aldeia, vá alguma vez passar alguém
que não seja conhecido de todos e por todos e não saiba de cor o
que há dentro de cada quintal.
À direita do portão há uma
trepadeira com umas flores brancas, folhinhas miúdas, colada ao
muro. Depois do fim do muro não há mais aldeia. Só há casa da
prima Alzira, que morreu velhinha e solteira há já tantos anos,
coitada. No pátio de casa dela havia um forno e quando se cozia pão
a minha avo também lá ia. E eu, curiosa, só não acompanhava se
não me deixassem. No pátio havia patos a debicar restos de ervas.
Eu não engraçava com eles porque tinham bicos grandes, não tinham
medo de mim e eu só estava habituada às tontas das galinhas dos
meus avós.
Para lá dessa última casa há um carreiro estreito,
entre muros de xisto, por onde só consegue passar gente a pé,
talvez alguns animais presos por cordas. É ladeado por silvas, tojos
e outras ervas que não picam, por isso nunca lhes soube o nome. O
carreiro desemboca numa tapada ampla, luminosa, em vários tons de
verde e castanho, onde há uns carvalhos velhíssimos, enormes, com
umas pernadas compridas, limpas de ramos secos ou folhas inúteis,
que quase tocam o chão. O meu irmão e eu montávamos a cavalo
nessas pernadas e balançávamos até cansar... para cima, para
baixo, para cima, para baixo. Um dia uma das pernadas partiu, o meu
irmão caiu, bateu com a cabeça numa pedra coberta de musgo e teve
uma reação esquisita, com tonturas e alterações transitórias da
visão que eu hoje em dia consigo explicar através de nomes
científicos complicados, mas na altura só me deu muito medo.
Recuperou depressa, esquecemos o episódio e voltamos a brincar nos
ramos dos carvalhos.
Depois dessa tapada... bom, há mais caminhos.
Uns vão dar às hortas que os meus avós cultivavam, outros a
silvados que no verão se enchem de amoras grandes, pretas e doces e
há caminhos que não sei onde vão dar. Nas hortas os meus avós
cultivavam de tudo um pouco... ali na Tapada da Fonte lembro-me de
grão de bico. E mais abaixo onde era mais fácil o acesso à água,
uns pés de feijão, talvez cebolas, alfaces tenras. Entre as hortas
há espaços cobertos de erva macia onde pastam os animais, se ceifa
erva para os coelhos e crescem morangos bravos. Estes nunca foram
grande coisa em termos de sabor, mas era divertido procura-los e
comê-los. Noutra horta, nos Covões, era milho e batata que se
semeava. No centro da horta o poço, com o picoto para tirar água à
custa da força de braços do meu avô. À beira do poço a pereira,
que tem tanto de grande como as pêras têm de pequenas e abundantes.
Muitas vêm bichadas, mas são tão boas que vale a pena o trabalho
de escolher as mais sãs para trincar. Mais acima há uma figueira,
que só dá figos em Setembro. Do outro lado a cerejeira e, já quase
a entrar na floresta, os castanheiros. Enormes, poderosos e
produtivos. Ah, e oliveiras, claro, mas essas estão por todo o lado.
E videiras em cada muro são também uma constante.
Deixando as hortas e voltando
ao portão. Pois, abrindo o portão, há um pátio. À esquerda ficam
as escadas que sobem para a casa, para o primeiro andar. A parte de
baixo da casa, nesta zona do país chamada de loja, era onde ficava a
oficina de sapateiro do meu avô, com o seu cheiro a couro, a graxa,
um monte de ferramentas fascinantes mas perigosas e sapatos
esquecidos. Noutra divisão da loja armazenavam-se as colheitas.
Batata em prateleiras, milho em arcas, potes com azeite, pipas de
vinho, feijões secos em sacos de chita antigos e ultimamente uma
arca frigorífica com bifes, carapaus e outras coisas congeladas. Ah,
e os presuntos, que cheiravam tão bem, besuntados em pasta de
pimentão e pendurados no teto, quando ainda se criava o porquinho.
Em frente, no pátio, os currais das cabras, cabritos e cabritinhos.
Fazíamos touradas com os cabritos e sacas vazias. Os cabritos, tão
pequenos, só queriam brincar. Investiam contra nós e nós, miúdos
pequenos e assustadiços, fugiamos escada acima, tão patetas. Mais à
direita o curral do porco, mas esse já há muitos anos deixou de ter
inquilino. E ainda mais à direita, debaixo do palheiro, duas ou três
gaiolas para coelhos. Eram tão bonitos e macios, os coelhinhos.
Desde que eles nasciam sabíamos bem que um dia seriam guisado, coisa
que nunca nos fez confusão, mesmo sendo eles tão fofinhos. Lá em
cima, no palheiro, havia folhagem de milho seca ao sol para dar aos
animais no inverno. Picava se rebolassemos nela mas cheirava bem. O
fim da rua mesmo ao lado do palheiro é iluminado por um velho e
desconjuntado candeeiro do município, junto ao qual voam traças e
morcegos à noite. Entre a casa e o palheiro há uma varanda, que
corresponde ao teto dos currais. Aí estão os vasos de flores da
minha avó, os temperos para a comida em canteiros de cimento e as
cadeiras onde ela se sentava com o meu avô a ver quem passava na
estrada mais além. Confortavelmente, em cadeiras de pau, por baixo
de uma latada de uvas morangueiras.
Voltando ao pátio e àquilo
que fica do lado esquerdo, ao lado da escada. Há dois metros de
caminho que dá para o poço. O poço tem um motor elétrico que se
liga quando se quer tirar água e está coberto por cima, pois onde
há crianças todos os cuidados são poucos. À frente do poço há
uma hortênsia. Grande e farfalhuda, generosa nas flores de um azul
deslavado, as únicas que consegue produzir. Claro que estou farta de
ver hortênsias grandes, pequenas, muitos bonitas, pouco bonitas, de
todas as cores. Mas aquela é especial, já lá estava quando eu
nasci, a dar flores para enfeitar jarras. Tantas vezes tentei laçar
a hortênsia, à moda do far west, apanha-la como se fosse um animal
perigoso. Acabava por apenas lhe arrancar partes de folhas que
ficavam irregularmente rasgadas e mais tarde ouvir a minha avó
resmungar que não percebia que bicho lhe andava a dar cabo do
jardim. Ao lado da hortênsia há um arbusto chamado arruda. É
bonito mas cheira mal. Um dia, teria os meus sete ou oito anos,
perguntei à minha avó se se podia fazer chá de hortênsia.
Disse-me que não. Depois perguntei se se podia fazer chá de arruda.
Disse-me que sim, mas que não era bom e desmanchava os bebés nas
barrigas das mães. Por precaução nunca mais me aproximei da arruda
e passei a contornar o poço pelo outro lado.
Tem que se contornar o poço para alcançar o tanque de rega, onde se armazena a água antes de a
utilizar nas couves e nos tomates do quintal. O tanque tem mais de
meio metro de profundidade e pelo menos dois metros de comprimento.
Quanto à largura começa bem, mas depois torna-se um bocado
enviesado. Em suma, era uma piscina olímpica sem o cheiro a cloro.
Do outro lado do poço, para lá das escadas, está o galinheiro. Era
outro divertimento, abrir o portão das galinhas, deixá-las vir para
o pátio e depois tentar voltar a enxotá-las para a capoeira antes
da minha avó se zangar a sério.
Quem entra no pátio e segue a
direito (sem subir as escadas, sem ir para o tanque, sem ir aos
coelhos... ) percebe que há um pequeno declive, uma inclinação
ligeira, ali à porta da oficina do meu avô. A memória mais antiga
que tenho é nesse local. Eu teria dois anitos, era 1981, talvez. A
minha avó fez um banquinho com uns pneus e outras tralhas, sentou-me
nele e puxou-nos por essa rampa. Varias vezes, de seguida, e eu a rir
à gargalhada enquanto descia, mesmo junto à minha avó. Há uma
fotografia desbotada tirada pelo meu pai que ajuda a compôr esta
minha memória. Mas a lembrança de como era divertido é bem real.
A casa, foi o meu avô que a
construiu, antes de se casar com a minha avó. O futuro sogro
ajudou-o. Ao contrário do que era costume na época, só tinha
aquela filha e um rapaz que viria a ser padrinho do meu pai e que já
andava por Lisboa.
A casa é simples. Entra-se
para um espaço tipo sala comum, onde se come, pois tem uma mesa e
varias cadeiras, mas onde está também a televisão e o frigorífico.
Não há sofá mas há uma arca vermelha, antiga, pesada, que deve
ser mais velha que o meu pai e tem lá dentro, aconchegadas sobre uns
cobertores velhos, umas roupinhas que ele usou quando era bebé. Não
sei se lá há está mais alguma coisa interessante, pois só me
lembro de a minha avo abrir arca numa ocasião. Mas em cima da arca e
das suas almofadas podiam-se sentar três de uma vez. E muitos
natais, de pé em cima dessa arca, o meu irmão e eu cantámos e
dançamos, fizemos os nossos pequenos espetáculos que culminavam em
discussão entre os dois artistas.
Na cozinha, pequena e fusca, há
um armário baixo em cuja gaveta se guardava um pratinho com
sardinhas gordas fritas em azeite. Na lareira, que ali se chama
fogueira, a minha avó fazia por vezes, numa forma que se poisava nas
brasas, uns bolinhos espalmados tipo waffles, em forma de tapetes,
mas em massa de pão de ló. Eram bem bons. Desse tal tal espaço
onde se come passa-se também para a sala propriamente dita, que não
serve para nada pois nunca é usada. Tem uma mesa e umas cadeiras
mais bonitas, uns sofás frios, escorregadios, que rangem quando a
gente se senta neles e uns móveis com loiças das bisavós. Por cima
de um dos móveis fica o cantinho das fotografias e dos santinhos.
Sem ordem nem critério definidos eu e o meu irmão misturamo-nos com
a N. Sra. de Fátima, o Dr. Souza Martins, uma garrafinha vazia que
teve água benta de Lourdes e outras coisas menos ou mais
importantes. Da sala passa-se para os dois pequenos quartos com camas
de ferro. Um, dos meus avós, com mantas antigas e coloridas. Outro,
que era do meu pai e onde eu dormia quando lá ficava nas férias de
verão ou ocasionalmente nalguma sexta feira de inverno. Do outro
lado da sala, oposto às portas dos quartos, num canto, está uma
arca preta. Aí estão coisas importantes da minha avó, as suas
pequenas preciosidades. Não faço ideia o que são. Talvez lençóis
de linho nunca usados. Talvez toalhas bordadas. Mas mesmo ao cimo, a
primeira coisa que se encontra ao abrir a arca, é a caixa de musica.
Uma caixinha preta envernizada, tão bonita. Talvez tenha também
umas flores pintadas, já há uns anos que não lhe mexo. Uma
chavezinha pendurada num baraço branco e desfiado roda na fechadura
e a tampa abre. Levanta-se uma bailarina que começa a dançar,
sempre à roda, sem se cansar. E soa uma melodia suave. Isto se
alguém tiver dado corda à caixa, pois claro. A tampa da caixa tem
no interior abaulado pequenos espelhos colados sequencialmente que
dão a sensação de espaço infinito, para que a bailarina de folhos
cor de rosa e braços no ar não se sinta sozinha. A caixa de música
foi enviada pelo padrinho do meu pai à minha avó. Comprada em
Moçambique e antes disso vinda da China, quando as coisas chinesas
eram de qualidade. Sempre que ficava em casa dos meus avós ia piscar
o olho à bailarina. Não era difícil adivinhar que sendo eu a única
descendente feminina da família, quando eu fosse grande seria para
mim.
No quintal atrás da casa,
vê-se das janelas, há as omnipresentes oliveiras e videiras. Há
uma laranjeira deprimida (as laranjas são bem bonitas, mas sempre
foram secas e pouco doces), há outra figueira, um belo diospireiro,
uma macieira e um abrunheiro. O abrunheiro ou ameixoeira, não sei
bem, é a árvore que fica mais perto da porta do quintal, mesmo ali
ao lado da varanda. À sua sombra a minha avó plantava dois regos de
morangueiros para os netos mais um par de regos de flores, donde
recordo uns cravos franceses amarelo-alaranjados. O abrunheiro tem
uma capacidade de produção de fruta impressionante. As ameixas são
vermelho escuras, doces, mesmo saborosas e há uma escada ali à mão.
Por isso sempre foi fácil subir lá para cima e comer até fartar.
Quentes e diretamente da árvore. Valia a pena o incómodo seguinte.
Isso e as uvas morangueiras em Setembro.
E pronto, é assim a casa dos
meus avós.
Na realidade, a ultima vez que
lá fui foi há dois anos. Tínhamos feito 80 km para uma tarde bem
passada na praia fluvial do Mosteiro, ali tão perto. Sempre que
íamos ao Mosteiro ou a outro local das redondezas passávamos depois
nas Sarzedas. A minha filha tinha sete anos e o meu filho quase três.
Bem olharam para as uvas, mas era Junho e estavam verdes. Acabaram a
fazer caretas debaixo de um guarda chuva velhíssimo, amarelo, com
ursos azuis, que a minha avó me comprou quando eu era do tamanho
deles. O meus avós sentados na arca vermelha. O meu avô Álvaro a
perguntar se a vida me corria bem na Suíça (ao fim de umas vezes
deixei de o corrigir e de explicar que era Suécia) enquanto insistia
com o meu marido para beber mais um copo de vinho caseiro. A minha
avó São com ar algo confuso, fazendo perguntas cautelosas e pouco
pessoais. A casa estava igual ao que eu me lembrava. Os meus avós
mais velhos, a minha avó já não conseguia chegar com a mãos ao
chão sem dobrar os joelhos, coisa que eu nunca consegui mas que ela
fazia sem dificuldade aos 80 e tal anos e o meu avô com menos
dentes. Quando um mês depois voltamos a Portugal para as férias de
verão, já não fomos às Sarzedas. A minha avó tinha adoecido de
vez e o meu pai foi lá buscá-los, aos dois. Estando os meus avós
na mesma cidade que eu não havia razão imediata para voltar às
Sarzedas e olhar para uma casa vazia, uma gaveta sem sardinhas, um
pátio com ervas. Devia ter lá ido buscar a caixa de música, mas
não o faria com os meus avós vivos. A minha avó morreu passado
pouco tempo e o meu avô um ano depois. Tinha planeado lá voltar
neste Natal, mas houve demasiadas outras coisas a fazer. Na Páscoa
estava eu cansada de mais, queria apenas aproveitar os meus dias de
pausa sem pensar em nada. Este ano não fui a Portugal em Junho, como
fiz doutras vezes, porque os meus pais me vieram visitar. Ainda
bem...
Ardeu tudo. Não sobrou nada.
A hortênsia mais velha que eu, a arruda que desfaz bebés, os
currais que tinham partes em madeira, são apenas espaços vazios e
sujos de cinza. As videiras, o marmeleiro, o abrunheiro, o
diospireiro, as figueiras, os castanheiros, o azevinho, a pereira. Os
poços lá estarão mas não há como tirar água deles. Não há
rolas, cucos nem corujas. A arca preta ardeu, a sala, os quartos e a
minha caixa de música. Não há nada
verde. Nada.
Da minha família não
morreu ninguém, no incêndio. Quer dizer... aquela senhora amiga do meu pai
e aqueles primos da casa antes da fonte, de quem eu mal me lembro e
outros que eu só conhecia de nome. E apareceram umas pessoas simples
lá da aldeia a chorar na televisão, apareceu também o meu
padrinho, que mora na cidade, não morreu por pouco e que se sabe
queixar com termos jurídicos adequados.
O meu irmão já lá foi, num
dia de sol. Parece que a aldeia está escura, vazia de pessoas, de
animais, de vida. Sobrou apenas a arca vermelha, disse ele.
Portanto... foi assim a casa
dos meus avós.