quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Sankta Lucia, colonoscopias e dinossauros

Na Suécia não há presépios. Como, não há? Não há, pronto! Em minha casa há dois, mas a minha casa não conta. Se eu quiser comprar um presépio na Suécia talvez (talvez!) o encontre nas semanas imediatamente anteriores ao Natal, num canto escuro e descuidado de uma loja pouco afamada. Caro e feioso.
Em minha casa tenho, portanto, dois presépios. Um em cerâmica, pequeno, trazido de Portugal, peca única levemente estilizada, de traços arredondados, onde Maria e José convergem para o Menino. E outro comprado na Alemanha, na loja de recordações de uma Catedral, minúsculo, com as figuras tradicionais (em plástico branco a imitar um qualquer material mais nobre e caro, marfim talvez) montadas cuidadosamente dentro de meia casquinha de noz. Qualquer um deles é bonito.

O Natal na Suécia começa no primeiro domingo do Advento, com velas em casa e candeeiros à janela. Ninguém sabe bem o que é o Advento enquanto conceito religioso. Mas todos sabem que é tempo de pendurar estrelas, colocar as quatro velas no castiçal especial para acender uma por semana e claro, iluminar todas a janelas com candeeiros grandes, bonitos, festivos. Na Suécia ninguém tem estores e cortinas são poucas. Atendendo a que em Dezembro o sol nasce por volta das nove e se põe pelas três da tarde (isto no sul do país) há que admitir que o efeito é bonito e acolhedor. No meio da escuridão olhar em volta e ver tantas janelinhas iluminadas. Suponho que a maioria das pessoas tenha tomadas com temporizador, daqueles que fazem com que os candeeiros liguem e desliguem automaticamente. Eu ligo os meus dois candeeiros pequeninos quando chego a casa, se me lembrar, já com duas ou três horas de noite e desligo-os quando me deito, sem esperar pela manhã. Depois vem o segundo domingo do Advento, acende-se a segunda vela. E antes do terceiro domingo e da terceira vela, vem um dia extraordinário, o dia de Santa Luzia, Sankta Lucia. A importância do dia é tal que as crianças na escola não tem festa de Natal mas sim festa de Sankta Lucia.



No fim dos anos 80 e inicio dos 90 passávamos o Natal nas Sarzedas (uma aldeia minúscula, de onde o meu pai é natural, a um quarto de hora de carro de Pedrogão Grande, de onde é a minha mãe). Dormíamos na casa de Pedrogão desde o dia 23, pelo menos. Assim, no dia 24 bem cedo o meu irmão e eu acordávamos e ligávamos a velha televisão a preto e branco, para ver a emissão especial infantil dedicada ao Natal. Ali a meio da manhã, já na altura em que a nossa mãe voltava da rua com pão fresco e cheiro a Natal e a nossa avó tinha acendido a lareira da cozinha com lenha das oliveiras desbastadas no último Outono, os desenhos animados eram interrompidos por um filme de meia hora dedicado a explicar o Natal no Norte da Europa. Invariavelmente era sobre as celebrações de Santa Luzia. Desses programas antigos recordo um grupo de crianças de cabelos compridos e loiros com vestidos brancos até aos pés, velas na mão ou na cabeça, que caminhavam na neve, no escuro e cantavam numa língua incompreensível, mas onde se percebia claramente a repetição de Sankta Lucia, Sankta Lucia. Iam de porta em porta pelos campos e comiam bolachinhas. Tirando o facto desta realidade se passar umas duas semanas mais cedo que o retratado e de eu ainda não ter visto assim tanta neve, esta ideia que me ficou do Natal no norte da Europa não anda longe da realidade.

O dia de Santa Luzia comemora-se a 13 de Dezembro. Sem ir espreitar ao Google não há muito que eu saiba dizer sobre o assunto. Era, ao que parece, originária de Itália, não aceitou converter-se ao paganismo e passou a estar de alguma forma relacionada com a luz, no sentido literal e religioso figurado, a representá-la. Comemora-se na Suécia não como festa católica ou religiosa mas de forma tradicional e popular (se bem que cada vez mais a tradição se resuma a comer pepparkakor, as bolachinhas de gengibre e a beber glögg, originalmente vinho quente com especiarias mas que também pode ser feito com sumo de maca e que se tem tornado insípido na sua versão não alcoólica, principalmente se comparado com as receitas mais saborosas de países vizinhos).

Nas lojas suecas, além de árvores de Natal e enfeites adequados a todos os gostos e bolsas, vende-se então o chamado Luciatåg, procissão de Santa Luzia numa tradução livre, se bem que no sentido literal o significado de tåg seja comboio. Tal como nos países mais a sul se vendem presépios, aqui há este Lucitåg que consiste num conjunto de figurinhas de crianças, em cerâmica, geralmente cinco, com ar simpático. A primeira figura, a principal, é Sankta Lucia. Cabelos longos e loiros, vestes alvas até aos pés, uma fita vermelha ou prateada à cintura e claro, a coroa de velas acesas a toucar a cabeça, a iluminar a escuridão e a trazer a luz. Mãos postas como que em oração e rosto sereno e doce. Depois segue-se outra menina vestida de branco mas é menos luminosa pois traz apenas uma vela na mão. Há o Stjärna Gosse, o rapazinho da estrela, um menino com idêntica indumentária porém complementada com estrelinhas douradas no peito, no chapéu pontiagudo e na varinha magica levantada no ar. Há o Pepparkaksgubbe, o rapazinho biscoito de gengibre, vestido com calças, casaco e chapéu castanho debruados a branco a fazer lembrar enfeites de açúcar glace. E por fim o Pai Natal. Não era mesmo o Pai Natal, era só um duende normal, um tomte da tradição popular sueca. Mas com o passar dos anos transformou-se no Jultomte, o Pai Natal. É bem bonito, o comboinho de Sankta Lucia.



E se me perguntarem do que me lembro do dia 13 de Dezembro de 2017, dia de Santa Luzia? A música de sempre, claro. Com colonoscopias e dinossauros!

O dia de Santa Luzia amanheceu branco. Quando começou a clarear, passava das oito da manhã e continuava a nevar. Os meus filhos já tinham ficado nas respetivas escolas, meia hora mais cedo do que o habitual e eu já tinha conduzido os quase 50km até outro hospital noutra cidade, onde tenho ido uma vez por semana para aprender a fazer colonoscopias. A estrada estava escorregadia e o facto de não estar frio (sim, estava aquele calor nórdico, meio grau positivo) fazia com que de vez em quando a neve meio derretida que escorregava dos tejadilhos dos carros que circulavam em sentido contrario fosse projetada para o meu vidro. Já depois de ter estacionado e de ter atravessado a papa de gelo à altura do tornozelo que só parava à porta do hospital, troquei de roupa, conversei um pouco com o meu coordenador e percebi que, mais uma vez, os planos do dia para mim seriam “olhar” em vez de “fazer”. Suspirei, decidida desta vez a não continuar naquele local, cheio de boas e acolhedoras intenções, mas onde tudo se processava a um ritmo exasperantemente lento. Revi mentalmente as alternativas de aprendizagem que tinha e como no dia seguinte as iria expôr assertivamente ao colega responsável pela minha formação. Enquanto eu estava absorvida pelos meus pensamentos juntou-se a nós uma enfermeira que no seu sueco rápido e gutural falou do dia de Sankta Lucia numa algaraviada que incluía pingue-pongue, glögg e a cave do hospital. Não percebi à primeira (apesar de já cá estar há três anos e troca o passo, tudo aquilo que vá além da linguagem estritamente médica leva ainda alguns minutos a processar). Mas obedientemente segui atrás dos outros.
Descemos até à cave, caminhamos por corredores largos e baixos por cujos tetos correm inúmeros canos, condutas e fios elétricos, que por sua vez faz com que pareçam ainda mais baixos e labirínticos. Ao longe uma árvore de Natal de plástico barata, com bolas vermelhas e luzes coloridas a piscar. Chegámos a uma sala larga de um branco recente e limpo, uma das paredes revestida a prateleiras onde a nota dominante era literatura médica ultrapassada, própria dos anos em que o UpToDate, PubMed ou mesmo uma boa googladela não eram ainda de acesso universal. Havia também um rádio, onde Mariah Carey, John Lennon, Wham e outros debitavam circularmente as mesma musicas natalícias de amor fraterno, não fraterno e de paz. A um canto uma mesa com o inevitável glögg quentinho e sem álcool, as pepparkakor e os skumtomtar, gomas cor de rosa e brancas em forma de pai Natal. E no centro da sala uma enorme mesa de pingue-pongue, verde-escura, nova e apetitosa, mais as respetivas raquetes e bolas. Calhou-me a mim e ao outro médico sermos os primeiros a jogar. Ele tinha prática, mas fui-me aguentando. Depois foram as enfermeiras experimentar o novo divertimento enquanto nós mordiscávamos uma bolacha. Entretanto apareceu a bibliotecária. Uma mulher pouco mais velha que eu, algo mais pesada que eu, tão cabeluda como eu. Cabelo espesso, pintado de negro, longo, com vontade própria à conta de não ser liso e andar solto (já o meu anda devidamente controlado por um elástico espiral transparente e tem umas madeixas mais claras que se destacam na massa castanha escura). Camisola de malha preta, mangas compridas. Saia preta rodada, bem abaixo do joelho. Meias e sapatos pretos. O conjunto completava-se com um mega colar de pérolas de plástico pretas e uma rosa artificial preta. A bibliotecária com ar de bruxa (nas palavras do meu colega alemão, pois um sueco nunca diria tal coisa e eu já aprendi que nunca nos devemos referir aos aspeto físico dos outros mesmo que se seja mais fácil identificar determinada pessoa por causa do seu espampanante cabelo rosa-choque ou que apenas queiramos fazer um inocente e desinteressado elogio) deslizava rapidamente numa trotineta amarela de três rodas, meio de deslocação habitual nos hospitais suecos. Trazia no cesto mais livros fora de prazo para depositar. Não era bonita nem feia, era simpática e deixou-se ficar a conversar com a responsável pelas comemorações da Lucia com uma mesa de pingue-pongue, enquanto nós nos escapulíamos discretamente para o nosso departamento.
Já com o doente deitado e sedado à nossa frente, ainda sob influencia do surrealismo de toda a situação que tinha acabado de experimentar ou talvez iluminada pela santa do dia, perdi a vergonha e expliquei ao meu colega, com os melhores argumentos que consegui, que queria “fazer” qualquer coisa em vez de “olhar”. Consegui negociar cinco minutos cuidadosos no inicio do procedimento. Esse curto espaço de tempo correu afinal correu bastante bem para o meu lado, sob as indicações atentas do meu colega. Percebeu-se entretanto que o doente estava mal preparado ou seja, não tinha tomado laxante suficiente e havia cocó por todo o lado. Literalmente. O que anulava a possibilidade de se fazer um colonoscopia diagnóstica adequada. Via-se menos mucosa que cocó. Aproveitou-se assim para, enquanto se confirmava de forma bastante sofrível a ausência de inflamação na mucosa cronicamente doente, investir um pouco na minha aprendizagem. Depois dessa primeira colonoscopia nesse doente ainda fiz mais duas, com a ajuda do meu colega. Acabei o dia de trabalho satisfeita e com vontade de voltar, mas com uma terrível dor de ombros, típica de quem está a aprender a lidar com um tubo dentro de outro ser humano e fica tenso e rígido pela falta de prática. Ressoaram-me nas mente as as sábia e irónicas palavras do meu marido para o meu filho uns dias antes: “A mamã passa o dia a ver doentes a dar puns e pagam-lhe para isso!”.
Assim se explica como associo o dia da luminosa Sankta Lucia a colonoscopias.

E os dinossauros, de onde vêm? Bom, o meu filho, 5 anitos, decidiu que na festa da escolinha queria ser o Stjärna Gosse, o rapazinho da estrela. Na véspera à noite procurei a túnica branca que comprara dois anos antes para a irmã e constatei que tinha uns bons 20 cm a mais. O tempo era curto e o sono era muito, pelo que improvisei uma bainha com agrafos. As estrelas, depois de recortadas de um saco de papel acastanhado e brilhante, foram cuidadosamente colocadas no peito do vestido com fita-cola transparente. O chapéu bicudo foi montado e a estrela grande encaixada na ponta da varinha. Ficou muito bem e pude ir dormir sossegada. Só que toda a noite sonhei que o meu filho mudara de ideias e já não queria ser o rapaz da estrela, mas sim o rapaz dos dinossauros. Sim, dos dinossauros, coisa nunca vista! Seria uma estreia, num Luciatåg, mas quase aposto que nesta Suécia onde a tolerância para com tudo e todos é a regra, isso apenas seria encarado como uma original e inovadora ideia pelas professoras da escolinha. Só não houve tolerância quando há coisa de um ano uma conhecida cadeia de lojas de roupa fez estrela do seu anúncio de Natal um rapazinho amoroso, de pele escura, vestido de Lucia, de branco e com velas na cabeça. Aí a tolerância só se manifestou depois de o anúncio ter sido retirado. Enfim, passei toda a minha noite sonhada a colar dinossauros verdes em túnicas brancas, os dinossauros teimavam em cair, em não querer ficar no lugar, o meu filho a choramingar que queria ser o menino dos dinossauros, queria dinossauros até na mão e no chapéu e eu angustiada sem o conseguir ajudar.
Daí os dinossauros.



E depois do meu primeiro dia de colonoscopias com cocó e de subconscientes invadidos por dinossauros, a festa da escola no dia de Sankta Lucia, como foi, afinal?
Ute är mörkt och kallt... Lá fora está escuro e frio, assim começa a conhecida canção... Como esperado, a festa que decorreu pelas cinco da tarde (ou da noite...) no pátio coberto de neve, foi acolhedora e luminosa. A noite fria aquecida pelas vozes afinadinhas de duas dezenas de crianças. As meninas vestidas de Lucia, os meninos de biscoito de gengibre ou pai Natal. O meu filho era o único rapazinho da estrela e destacava-se por isso. Tal como na canção, onde depois surge a luz que é quente, no fim da festa serviu-se... o quê? Pois claro, glögg e pepparkakor. Já os esperados dois dedos de conversa acontecem apenas entre aqueles que não são suecos. Na altura de ir embora, bolacha ainda na boca pois a hora da aula de patinagem no gelo já lá ia, uma mãe que me tinha cumprimentado ao longe veio ter comigo. Sou médica de uma das filhas, no hospital. Nenhum sueco me viria falar de trabalho numa festa da escola. Se viessem eu responderia como médica, claro está, mas eles não sabem. E se o soubessem de igual modo não o fariam. Esta mãe não é, evidentemente, sueca. Ainda assim limitou-se a quebrar as regras não escritas perguntando apenas educadamente se eu lhe poderia telefonar quando estivesse no hospital. Como lhe assegurei que o faria, abriu-se num sorriso, explicou-me em duas frases curtas o que a preocupava, voltou a agradecer e desapareceu na multidão.


A versão breve mas cristalina da Sankta Lucia cantada pelos meus filhos acompanha-me de cada vez que conduzo com escuro e frio (o que não é assim tão invugar, neste país), antes de me perder noutros pensamentos. É algo que não existia em Portugal, nem faz parte da minha cultura, embora a minha memória tenha ido repescar lembranças antigas e mal enquadradas. Mas a gente vai aprendendo que o glögg afinal às vezes sabe bem e que apesar de não haver presépios há outras coisas que se também se entranham. Tenho pena que os meus filhos, apesar de saberem cantar o Olhei para o céu, estava estrelado... não o façam da forma espontânea com que trauteiam as musicas de Natal suecas. Onde é que eu quero chegar com isto? A lado nenhum. É apenas um relato enviesado e pessoal de um dia 13 de Dezembro, que não é sequer passível de qualquer interpretação. É apenas uma descrição do que aconteceu... 

quinta-feira, 6 de julho de 2017


A casa dos meus avós

Quero falar sobre a casa dos meus avós.

Na casa dos meus avós entra-se por um portão verde e largo. Talvez já não seja verde, talvez o meu avô o tenha pintado de outra cor algures no tempo. Mas é nessa cor que me lembro dele. Há um muro alto que não deixa ver para dentro do pátio e acima do muro a latada de folhas grandes e frescas protege ainda mais das miradas indiscretas. Como se naquela aldeia, naquele lugar daquela aldeia, vá alguma vez passar alguém que não seja conhecido de todos e por todos e não saiba de cor o que há dentro de cada quintal. 

 À direita do portão há uma trepadeira com umas flores brancas, folhinhas miúdas, colada ao muro. Depois do fim do muro não há mais aldeia. Só há casa da prima Alzira, que morreu velhinha e solteira há já tantos anos, coitada. No pátio de casa dela havia um forno e quando se cozia pão a minha avo também lá ia. E eu, curiosa, só não acompanhava se não me deixassem. No pátio havia patos a debicar restos de ervas. Eu não engraçava com eles porque tinham bicos grandes, não tinham medo de mim e eu só estava habituada às tontas das galinhas dos meus avós. 

Para lá dessa última casa há um carreiro estreito, entre muros de xisto, por onde só consegue passar gente a pé, talvez alguns animais presos por cordas. É ladeado por silvas, tojos e outras ervas que não picam, por isso nunca lhes soube o nome. O carreiro desemboca numa tapada ampla, luminosa, em vários tons de verde e castanho, onde há uns carvalhos velhíssimos, enormes, com umas pernadas compridas, limpas de ramos secos ou folhas inúteis, que quase tocam o chão. O meu irmão e eu montávamos a cavalo nessas pernadas e balançávamos até cansar... para cima, para baixo, para cima, para baixo. Um dia uma das pernadas partiu, o meu irmão caiu, bateu com a cabeça numa pedra coberta de musgo e teve uma reação esquisita, com tonturas e alterações transitórias da visão que eu hoje em dia consigo explicar através de nomes científicos complicados, mas na altura só me deu muito medo. Recuperou depressa, esquecemos o episódio e voltamos a brincar nos ramos dos carvalhos. 

Depois dessa tapada... bom, há mais caminhos. Uns vão dar às hortas que os meus avós cultivavam, outros a silvados que no verão se enchem de amoras grandes, pretas e doces e há caminhos que não sei onde vão dar. Nas hortas os meus avós cultivavam de tudo um pouco... ali na Tapada da Fonte lembro-me de grão de bico. E mais abaixo onde era mais fácil o acesso à água, uns pés de feijão, talvez cebolas, alfaces tenras. Entre as hortas há espaços cobertos de erva macia onde pastam os animais, se ceifa erva para os coelhos e crescem morangos bravos. Estes nunca foram grande coisa em termos de sabor, mas era divertido procura-los e comê-los. Noutra horta, nos Covões, era milho e batata que se semeava. No centro da horta o poço, com o picoto para tirar água à custa da força de braços do meu avô. À beira do poço a pereira, que tem tanto de grande como as pêras têm de pequenas e abundantes. Muitas vêm bichadas, mas são tão boas que vale a pena o trabalho de escolher as mais sãs para trincar. Mais acima há uma figueira, que só dá figos em Setembro. Do outro lado a cerejeira e, já quase a entrar na floresta, os castanheiros. Enormes, poderosos e produtivos. Ah, e oliveiras, claro, mas essas estão por todo o lado. E videiras em cada muro são também uma constante.

Deixando as hortas e voltando ao portão. Pois, abrindo o portão, há um pátio. À esquerda ficam as escadas que sobem para a casa, para o primeiro andar. A parte de baixo da casa, nesta zona do país chamada de loja, era onde ficava a oficina de sapateiro do meu avô, com o seu cheiro a couro, a graxa, um monte de ferramentas fascinantes mas perigosas e sapatos esquecidos. Noutra divisão da loja armazenavam-se as colheitas. Batata em prateleiras, milho em arcas, potes com azeite, pipas de vinho, feijões secos em sacos de chita antigos e ultimamente uma arca frigorífica com bifes, carapaus e outras coisas congeladas. Ah, e os presuntos, que cheiravam tão bem, besuntados em pasta de pimentão e pendurados no teto, quando ainda se criava o porquinho. Em frente, no pátio, os currais das cabras, cabritos e cabritinhos. Fazíamos touradas com os cabritos e sacas vazias. Os cabritos, tão pequenos, só queriam brincar. Investiam contra nós e nós, miúdos pequenos e assustadiços, fugiamos escada acima, tão patetas. Mais à direita o curral do porco, mas esse já há muitos anos deixou de ter inquilino. E ainda mais à direita, debaixo do palheiro, duas ou três gaiolas para coelhos. Eram tão bonitos e macios, os coelhinhos. Desde que eles nasciam sabíamos bem que um dia seriam guisado, coisa que nunca nos fez confusão, mesmo sendo eles tão fofinhos. Lá em cima, no palheiro, havia folhagem de milho seca ao sol para dar aos animais no inverno. Picava se rebolassemos nela mas cheirava bem. O fim da rua mesmo ao lado do palheiro é iluminado por um velho e desconjuntado candeeiro do município, junto ao qual voam traças e morcegos à noite. Entre a casa e o palheiro há uma varanda, que corresponde ao teto dos currais. Aí estão os vasos de flores da minha avó, os temperos para a comida em canteiros de cimento e as cadeiras onde ela se sentava com o meu avô a ver quem passava na estrada mais além. Confortavelmente, em cadeiras de pau, por baixo de uma latada de uvas morangueiras.



Voltando ao pátio e àquilo que fica do lado esquerdo, ao lado da escada. Há dois metros de caminho que dá para o poço. O poço tem um motor elétrico que se liga quando se quer tirar água e está coberto por cima, pois onde há crianças todos os cuidados são poucos. À frente do poço há uma hortênsia. Grande e farfalhuda, generosa nas flores de um azul deslavado, as únicas que consegue produzir. Claro que estou farta de ver hortênsias grandes, pequenas, muitos bonitas, pouco bonitas, de todas as cores. Mas aquela é especial, já lá estava quando eu nasci, a dar flores para enfeitar jarras. Tantas vezes tentei laçar a hortênsia, à moda do far west, apanha-la como se fosse um animal perigoso. Acabava por apenas lhe arrancar partes de folhas que ficavam irregularmente rasgadas e mais tarde ouvir a minha avó resmungar que não percebia que bicho lhe andava a dar cabo do jardim. Ao lado da hortênsia há um arbusto chamado arruda. É bonito mas cheira mal. Um dia, teria os meus sete ou oito anos, perguntei à minha avó se se podia fazer chá de hortênsia. Disse-me que não. Depois perguntei se se podia fazer chá de arruda. Disse-me que sim, mas que não era bom e desmanchava os bebés nas barrigas das mães. Por precaução nunca mais me aproximei da arruda e passei a contornar o poço pelo outro lado. 

Tem que se contornar o poço para alcançar o tanque de rega, onde se armazena a água antes de a utilizar nas couves e nos tomates do quintal. O tanque tem mais de meio metro de profundidade e pelo menos dois metros de comprimento. Quanto à largura começa bem, mas depois torna-se um bocado enviesado. Em suma, era uma piscina olímpica sem o cheiro a cloro. Do outro lado do poço, para lá das escadas, está o galinheiro. Era outro divertimento, abrir o portão das galinhas, deixá-las vir para o pátio e depois tentar voltar a enxotá-las para a capoeira antes da minha avó se zangar a sério.

Quem entra no pátio e segue a direito (sem subir as escadas, sem ir para o tanque, sem ir aos coelhos... ) percebe que há um pequeno declive, uma inclinação ligeira, ali à porta da oficina do meu avô. A memória mais antiga que tenho é nesse local. Eu teria dois anitos, era 1981, talvez. A minha avó fez um banquinho com uns pneus e outras tralhas, sentou-me nele e puxou-nos por essa rampa. Varias vezes, de seguida, e eu a rir à gargalhada enquanto descia, mesmo junto à minha avó. Há uma fotografia desbotada tirada pelo meu pai que ajuda a compôr esta minha memória. Mas a lembrança de como era divertido é bem real.

A casa, foi o meu avô que a construiu, antes de se casar com a minha avó. O futuro sogro ajudou-o. Ao contrário do que era costume na época, só tinha aquela filha e um rapaz que viria a ser padrinho do meu pai e que já andava por Lisboa.

A casa é simples. Entra-se para um espaço tipo sala comum, onde se come, pois tem uma mesa e varias cadeiras, mas onde está também a televisão e o frigorífico. Não há sofá mas há uma arca vermelha, antiga, pesada, que deve ser mais velha que o meu pai e tem lá dentro, aconchegadas sobre uns cobertores velhos, umas roupinhas que ele usou quando era bebé. Não sei se lá há está mais alguma coisa interessante, pois só me lembro de a minha avo abrir arca numa ocasião. Mas em cima da arca e das suas almofadas podiam-se sentar três de uma vez. E muitos natais, de pé em cima dessa arca, o meu irmão e eu cantámos e dançamos, fizemos os nossos pequenos espetáculos que culminavam em discussão entre os dois artistas. 

Na cozinha, pequena e fusca, há um armário baixo em cuja gaveta se guardava um pratinho com sardinhas gordas fritas em azeite. Na lareira, que ali se chama fogueira, a minha avó fazia por vezes, numa forma que se poisava nas brasas, uns bolinhos espalmados tipo waffles, em forma de tapetes, mas em massa de pão de ló. Eram bem bons. Desse tal tal espaço onde se come passa-se também para a sala propriamente dita, que não serve para nada pois nunca é usada. Tem uma mesa e umas cadeiras mais bonitas, uns sofás frios, escorregadios, que rangem quando a gente se senta neles e uns móveis com loiças das bisavós. Por cima de um dos móveis fica o cantinho das fotografias e dos santinhos. Sem ordem nem critério definidos eu e o meu irmão misturamo-nos com a N. Sra. de Fátima, o Dr. Souza Martins, uma garrafinha vazia que teve água benta de Lourdes e outras coisas menos ou mais importantes. Da sala passa-se para os dois pequenos quartos com camas de ferro. Um, dos meus avós, com mantas antigas e coloridas. Outro, que era do meu pai e onde eu dormia quando lá ficava nas férias de verão ou ocasionalmente nalguma sexta feira de inverno. Do outro lado da sala, oposto às portas dos quartos, num canto, está uma arca preta. Aí estão coisas importantes da minha avó, as suas pequenas preciosidades. Não faço ideia o que são. Talvez lençóis de linho nunca usados. Talvez toalhas bordadas. Mas mesmo ao cimo, a primeira coisa que se encontra ao abrir a arca, é a caixa de musica. Uma caixinha preta envernizada, tão bonita. Talvez tenha também umas flores pintadas, já há uns anos que não lhe mexo. Uma chavezinha pendurada num baraço branco e desfiado roda na fechadura e a tampa abre. Levanta-se uma bailarina que começa a dançar, sempre à roda, sem se cansar. E soa uma melodia suave. Isto se alguém tiver dado corda à caixa, pois claro. A tampa da caixa tem no interior abaulado pequenos espelhos colados sequencialmente que dão a sensação de espaço infinito, para que a bailarina de folhos cor de rosa e braços no ar não se sinta sozinha. A caixa de música foi enviada pelo padrinho do meu pai à minha avó. Comprada em Moçambique e antes disso vinda da China, quando as coisas chinesas eram de qualidade. Sempre que ficava em casa dos meus avós ia piscar o olho à bailarina. Não era difícil adivinhar que sendo eu a única descendente feminina da família, quando eu fosse grande seria para mim.

No quintal atrás da casa, vê-se das janelas, há as omnipresentes oliveiras e videiras. Há uma laranjeira deprimida (as laranjas são bem bonitas, mas sempre foram secas e pouco doces), há outra figueira, um belo diospireiro, uma macieira e um abrunheiro. O abrunheiro ou ameixoeira, não sei bem, é a árvore que fica mais perto da porta do quintal, mesmo ali ao lado da varanda. À sua sombra a minha avó plantava dois regos de morangueiros para os netos mais um par de regos de flores, donde recordo uns cravos franceses amarelo-alaranjados. O abrunheiro tem uma capacidade de produção de fruta impressionante. As ameixas são vermelho escuras, doces, mesmo saborosas e há uma escada ali à mão. Por isso sempre foi fácil subir lá para cima e comer até fartar. Quentes e diretamente da árvore. Valia a pena o incómodo seguinte. Isso e as uvas morangueiras em Setembro.

E pronto, é assim a casa dos meus avós.



Na realidade, a ultima vez que lá fui foi há dois anos. Tínhamos feito 80 km para uma tarde bem passada na praia fluvial do Mosteiro, ali tão perto. Sempre que íamos ao Mosteiro ou a outro local das redondezas passávamos depois nas Sarzedas. A minha filha tinha sete anos e o meu filho quase três. Bem olharam para as uvas, mas era Junho e estavam verdes. Acabaram a fazer caretas debaixo de um guarda chuva velhíssimo, amarelo, com ursos azuis, que a minha avó me comprou quando eu era do tamanho deles. O meus avós sentados na arca vermelha. O meu avô Álvaro a perguntar se a vida me corria bem na Suíça (ao fim de umas vezes deixei de o corrigir e de explicar que era Suécia) enquanto insistia com o meu marido para beber mais um copo de vinho caseiro. A minha avó São com ar algo confuso, fazendo perguntas cautelosas e pouco pessoais. A casa estava igual ao que eu me lembrava. Os meus avós mais velhos, a minha avó já não conseguia chegar com a mãos ao chão sem dobrar os joelhos, coisa que eu nunca consegui mas que ela fazia sem dificuldade aos 80 e tal anos e o meu avô com menos dentes. Quando um mês depois voltamos a Portugal para as férias de verão, já não fomos às Sarzedas. A minha avó tinha adoecido de vez e o meu pai foi lá buscá-los, aos dois. Estando os meus avós na mesma cidade que eu não havia razão imediata para voltar às Sarzedas e olhar para uma casa vazia, uma gaveta sem sardinhas, um pátio com ervas. Devia ter lá ido buscar a caixa de música, mas não o faria com os meus avós vivos. A minha avó morreu passado pouco tempo e o meu avô um ano depois. Tinha planeado lá voltar neste Natal, mas houve demasiadas outras coisas a fazer. Na Páscoa estava eu cansada de mais, queria apenas aproveitar os meus dias de pausa sem pensar em nada. Este ano não fui a Portugal em Junho, como fiz doutras vezes, porque os meus pais me vieram visitar. Ainda bem...

Ardeu tudo. Não sobrou nada. A hortênsia mais velha que eu, a arruda que desfaz bebés, os currais que tinham partes em madeira, são apenas espaços vazios e sujos de cinza. As videiras, o marmeleiro, o abrunheiro, o diospireiro, as figueiras, os castanheiros, o azevinho, a pereira. Os poços lá estarão mas não há como tirar água deles. Não há rolas, cucos nem corujas. A arca preta ardeu, a sala, os quartos e a minha caixa de música. Não há nada verde. Nada.

Da minha família não morreu ninguém, no incêndio. Quer dizer... aquela senhora amiga do meu pai e aqueles primos da casa antes da fonte, de quem eu mal me lembro e outros que eu só conhecia de nome. E apareceram umas pessoas simples lá da aldeia a chorar na televisão, apareceu também o meu padrinho, que mora na cidade, não morreu por pouco e que se sabe queixar com termos jurídicos adequados.

O meu irmão já lá foi, num dia de sol. Parece que a aldeia está escura, vazia de pessoas, de animais, de vida. Sobrou apenas a arca vermelha, disse ele.

Portanto... foi assim a casa dos meus avós.