Na Suécia não há presépios. Como,
não há? Não há, pronto! Em minha casa há dois, mas a minha casa
não conta. Se eu quiser comprar um presépio na Suécia talvez
(talvez!) o encontre nas semanas imediatamente anteriores ao Natal,
num canto escuro e descuidado de uma loja pouco afamada. Caro e
feioso.
Em minha casa tenho, portanto, dois
presépios. Um em cerâmica, pequeno, trazido de Portugal, peca única
levemente estilizada, de traços arredondados, onde Maria e José
convergem para o Menino. E outro comprado na Alemanha, na loja de
recordações de uma Catedral, minúsculo, com as figuras
tradicionais (em plástico branco a imitar um qualquer material mais
nobre e caro, marfim talvez) montadas cuidadosamente dentro de meia
casquinha de noz. Qualquer um deles é bonito.
O Natal na Suécia começa no primeiro
domingo do Advento, com velas em casa e candeeiros à janela.
Ninguém sabe bem o que é o Advento enquanto conceito religioso. Mas
todos sabem que é tempo de pendurar estrelas, colocar as quatro
velas no castiçal especial para acender uma por semana e claro,
iluminar todas a janelas com candeeiros grandes, bonitos, festivos.
Na Suécia ninguém tem estores e cortinas são poucas. Atendendo a
que em Dezembro o sol nasce por volta das nove e se põe pelas três
da tarde (isto no sul do país) há que admitir que o efeito é
bonito e acolhedor. No meio da escuridão olhar em volta e ver tantas
janelinhas iluminadas. Suponho que a maioria das pessoas tenha
tomadas com temporizador, daqueles que fazem com que os candeeiros
liguem e desliguem automaticamente. Eu ligo os meus dois candeeiros
pequeninos quando chego a casa, se me lembrar, já com duas ou três
horas de noite e desligo-os quando me deito, sem esperar pela manhã.
Depois vem o segundo domingo do Advento, acende-se a segunda vela. E
antes do terceiro domingo e da terceira vela, vem um dia
extraordinário, o dia de Santa Luzia, Sankta Lucia. A
importância do dia é tal que as crianças na escola não tem festa
de Natal mas sim festa de Sankta Lucia.
No fim dos anos 80 e inicio dos 90
passávamos o Natal nas Sarzedas (uma aldeia minúscula, de onde o
meu pai é natural, a um quarto de hora de carro de Pedrogão Grande,
de onde é a minha mãe). Dormíamos na casa de Pedrogão desde o dia
23, pelo menos. Assim, no dia 24 bem cedo o meu irmão e eu
acordávamos e ligávamos a velha televisão a preto e branco, para
ver a emissão especial infantil dedicada ao Natal. Ali a meio da
manhã, já na altura em que a nossa mãe voltava da rua com pão
fresco e cheiro a Natal e a nossa avó tinha acendido a lareira da
cozinha com lenha das oliveiras desbastadas no último Outono, os
desenhos animados eram interrompidos por um filme de meia hora
dedicado a explicar o Natal no Norte da Europa. Invariavelmente era
sobre as celebrações de Santa Luzia. Desses programas antigos
recordo um grupo de crianças de cabelos compridos e loiros com
vestidos brancos até aos pés, velas na mão ou na cabeça, que
caminhavam na neve, no escuro e cantavam numa língua
incompreensível, mas onde se percebia claramente a repetição de
Sankta Lucia, Sankta Lucia.
Iam de porta em porta pelos campos e comiam bolachinhas.
Tirando o facto desta realidade se passar umas duas semanas mais cedo
que o retratado e de eu ainda não ter visto assim tanta neve, esta
ideia que me ficou do Natal no norte da Europa não anda longe da
realidade.
O dia de Santa Luzia comemora-se a 13
de Dezembro. Sem ir espreitar ao Google não há muito que eu
saiba dizer sobre o assunto. Era, ao que parece, originária de
Itália, não aceitou converter-se ao paganismo e passou a estar de
alguma forma relacionada com a luz, no sentido literal e religioso
figurado, a representá-la. Comemora-se na Suécia não como festa
católica ou religiosa mas de forma tradicional e popular (se bem que
cada vez mais a tradição se resuma a comer pepparkakor,
as bolachinhas de
gengibre e a beber glögg,
originalmente vinho quente com especiarias mas que também
pode ser feito com sumo de maca e que se tem tornado insípido na sua
versão não alcoólica, principalmente se comparado com as receitas
mais saborosas de países vizinhos).
Nas lojas suecas, além de árvores de
Natal e enfeites adequados a todos os gostos e bolsas, vende-se então
o chamado Luciatåg,
procissão de Santa Luzia numa tradução livre, se bem que no
sentido literal o significado de tåg seja comboio. Tal como
nos países mais a sul se vendem presépios, aqui há este Lucitåg
que consiste num conjunto
de figurinhas de crianças, em cerâmica, geralmente cinco, com ar
simpático. A primeira figura, a principal, é Sankta Lucia.
Cabelos longos e loiros, vestes alvas até aos pés, uma fita
vermelha ou prateada à cintura e claro, a coroa de velas acesas a
toucar a cabeça, a iluminar a escuridão e a trazer a luz. Mãos
postas como que em oração e rosto sereno e doce. Depois segue-se
outra menina vestida de branco mas é menos luminosa pois traz apenas
uma vela na mão. Há o Stjärna Gosse, o rapazinho da
estrela, um menino com idêntica indumentária porém complementada
com estrelinhas douradas no peito, no chapéu pontiagudo e na varinha
magica levantada no ar. Há o Pepparkaksgubbe,
o rapazinho biscoito de gengibre, vestido com calças, casaco e
chapéu castanho debruados a branco a fazer lembrar enfeites de
açúcar glace. E por fim o Pai Natal. Não era mesmo o Pai
Natal, era só um duende normal, um tomte da tradição
popular sueca. Mas com o passar dos anos transformou-se no Jultomte,
o Pai Natal. É bem bonito, o comboinho de Sankta Lucia.
E se me perguntarem do que me lembro
do dia 13 de Dezembro de 2017, dia de Santa Luzia? A música de
sempre, claro. Com colonoscopias e dinossauros!
O dia de Santa Luzia amanheceu branco.
Quando começou a clarear, passava das oito da manhã e continuava a
nevar. Os meus filhos já tinham ficado nas respetivas escolas, meia
hora mais cedo do que o habitual e eu já tinha conduzido os quase
50km até outro hospital noutra cidade, onde tenho ido uma vez por
semana para aprender a fazer colonoscopias. A estrada estava
escorregadia e o facto de não estar frio (sim, estava aquele calor
nórdico, meio grau positivo) fazia com que de vez em quando a neve
meio derretida que escorregava dos tejadilhos dos carros que
circulavam em sentido contrario fosse projetada para o meu vidro. Já
depois de ter estacionado e de ter atravessado a papa de gelo à
altura do tornozelo que só parava à porta do hospital, troquei de
roupa, conversei um pouco com o meu coordenador e percebi que, mais
uma vez, os planos do dia para mim seriam “olhar” em vez de
“fazer”. Suspirei, decidida desta vez a não continuar naquele
local, cheio de boas e acolhedoras intenções, mas onde tudo se
processava a um ritmo exasperantemente lento. Revi mentalmente as
alternativas de aprendizagem que tinha e como no dia seguinte as iria
expôr assertivamente ao colega responsável pela minha formação.
Enquanto eu estava absorvida pelos meus pensamentos juntou-se a nós
uma enfermeira que no seu sueco rápido e gutural falou do dia de
Sankta Lucia numa algaraviada que incluía pingue-pongue,
glögg e a cave do hospital. Não percebi à primeira (apesar
de já cá estar há três anos e troca o passo, tudo aquilo que vá
além da linguagem estritamente médica leva ainda alguns minutos a
processar). Mas obedientemente segui atrás dos outros.
Descemos até à cave, caminhamos por
corredores largos e baixos por cujos tetos correm inúmeros canos,
condutas e fios elétricos, que por sua vez faz com que pareçam
ainda mais baixos e labirínticos. Ao longe uma árvore de Natal de
plástico barata, com bolas vermelhas e luzes coloridas a piscar.
Chegámos a uma sala larga de um branco recente e limpo, uma das
paredes revestida a prateleiras onde a nota dominante era literatura
médica ultrapassada, própria dos anos em que o UpToDate,
PubMed ou mesmo uma boa googladela não eram ainda de
acesso universal. Havia também um rádio, onde Mariah Carey,
John Lennon, Wham e outros debitavam circularmente as
mesma musicas natalícias de amor fraterno, não fraterno e de paz. A
um canto uma mesa com o inevitável glögg quentinho e sem
álcool, as pepparkakor e os
skumtomtar, gomas
cor de rosa e brancas em forma de pai Natal. E no centro da sala uma
enorme mesa de pingue-pongue, verde-escura, nova e apetitosa, mais as
respetivas raquetes e bolas. Calhou-me a mim e ao outro médico
sermos os primeiros a jogar. Ele tinha prática, mas fui-me
aguentando. Depois foram as enfermeiras experimentar o novo
divertimento enquanto nós mordiscávamos uma bolacha. Entretanto
apareceu a bibliotecária. Uma mulher pouco mais velha que eu, algo
mais pesada que eu, tão cabeluda como eu. Cabelo espesso, pintado de
negro, longo, com vontade própria à conta de não ser liso e andar
solto (já o meu anda devidamente controlado por um elástico espiral
transparente e tem umas madeixas mais claras que se destacam na massa
castanha escura). Camisola de malha preta, mangas compridas. Saia
preta rodada, bem abaixo do joelho. Meias e sapatos pretos. O
conjunto completava-se com um mega colar de pérolas de plástico
pretas e uma rosa artificial preta. A bibliotecária com ar de bruxa
(nas palavras do meu colega alemão, pois um sueco nunca diria tal
coisa e eu já aprendi que nunca nos devemos referir aos aspeto
físico dos outros mesmo que se seja mais fácil identificar
determinada pessoa por causa do seu espampanante cabelo rosa-choque
ou que apenas queiramos fazer um inocente e desinteressado elogio)
deslizava rapidamente numa trotineta amarela de três rodas, meio de
deslocação habitual nos hospitais suecos. Trazia no cesto mais
livros fora de prazo para depositar. Não era bonita nem feia, era
simpática e deixou-se ficar a conversar com a responsável pelas
comemorações da Lucia com uma mesa de pingue-pongue,
enquanto nós nos escapulíamos discretamente para o nosso
departamento.
Já com o doente deitado e sedado à
nossa frente, ainda sob influencia do surrealismo de toda a situação
que tinha acabado de experimentar ou talvez iluminada pela santa do
dia, perdi a vergonha e expliquei ao meu colega, com os melhores
argumentos que consegui, que queria “fazer” qualquer coisa em vez
de “olhar”. Consegui negociar cinco minutos cuidadosos no inicio
do procedimento. Esse curto espaço de tempo correu afinal correu
bastante bem para o meu lado, sob as indicações atentas do meu
colega. Percebeu-se entretanto que o doente estava mal preparado ou
seja, não tinha tomado laxante suficiente e havia cocó por todo o
lado. Literalmente. O que anulava a possibilidade de se fazer um
colonoscopia diagnóstica adequada. Via-se menos mucosa que cocó.
Aproveitou-se assim para, enquanto se confirmava de forma bastante
sofrível a ausência de inflamação na mucosa cronicamente doente,
investir um pouco na minha aprendizagem. Depois dessa primeira
colonoscopia nesse doente ainda fiz mais duas, com a ajuda do meu
colega. Acabei o dia de trabalho satisfeita e com vontade de voltar,
mas com uma terrível dor de ombros, típica de quem está a aprender
a lidar com um tubo dentro de outro ser humano e fica tenso e rígido
pela falta de prática. Ressoaram-me nas mente as as sábia e
irónicas palavras do meu marido para o meu filho uns dias antes: “A
mamã passa o dia a ver doentes a dar puns e pagam-lhe para isso!”.
Assim se explica como associo o dia da
luminosa Sankta Lucia a
colonoscopias.
E os dinossauros, de onde vêm? Bom, o
meu filho, 5 anitos, decidiu que na festa da escolinha queria ser o
Stjärna Gosse, o rapazinho da estrela. Na véspera à noite
procurei a túnica branca que comprara dois anos antes para a irmã e
constatei que tinha uns bons 20 cm a mais. O tempo era curto e o sono
era muito, pelo que improvisei uma bainha com agrafos. As estrelas,
depois de recortadas de um saco de papel acastanhado e brilhante,
foram cuidadosamente colocadas no peito do vestido com fita-cola
transparente. O chapéu bicudo foi montado e a estrela grande
encaixada na ponta da varinha. Ficou muito bem e pude ir dormir
sossegada. Só que toda a noite sonhei que o meu filho mudara de
ideias e já não queria ser o rapaz da estrela, mas sim o rapaz dos
dinossauros. Sim, dos dinossauros, coisa nunca vista! Seria uma
estreia, num Luciatåg, mas quase aposto que nesta Suécia
onde a tolerância para com tudo e todos é a regra, isso apenas
seria encarado como uma original e inovadora ideia pelas professoras
da escolinha. Só não houve tolerância quando há coisa de um ano
uma conhecida cadeia de lojas de roupa fez estrela do seu anúncio de
Natal um rapazinho amoroso, de pele escura, vestido de Lucia,
de branco e com velas na cabeça. Aí a tolerância só se manifestou
depois de o anúncio ter sido retirado. Enfim, passei toda a minha
noite sonhada a colar dinossauros verdes em túnicas brancas, os
dinossauros teimavam em cair, em não querer ficar no lugar, o meu
filho a choramingar que queria ser o menino dos dinossauros, queria
dinossauros até na mão e no chapéu e eu angustiada sem o conseguir
ajudar.
Daí os dinossauros.
E depois do meu primeiro dia de
colonoscopias com cocó e de subconscientes invadidos por
dinossauros, a festa da escola no dia de Sankta Lucia, como
foi, afinal?
Ute är mörkt och kallt... Lá
fora está escuro e frio, assim começa a conhecida canção...
Como esperado, a festa que decorreu pelas cinco da tarde (ou da
noite...) no pátio coberto de neve, foi acolhedora e luminosa. A
noite fria aquecida pelas vozes afinadinhas de duas dezenas de
crianças. As meninas vestidas de Lucia, os
meninos de biscoito de gengibre ou pai Natal. O meu filho era o único
rapazinho da estrela e destacava-se por isso. Tal como na canção,
onde depois surge a luz que é quente, no fim da festa serviu-se... o
quê? Pois claro, glögg e
pepparkakor. Já os esperados dois dedos de conversa acontecem
apenas entre aqueles que não são suecos. Na altura de ir embora,
bolacha ainda na boca pois a hora da aula de patinagem no gelo já lá
ia, uma mãe que me tinha cumprimentado ao longe veio ter comigo. Sou
médica de uma das filhas, no hospital. Nenhum sueco me viria falar
de trabalho numa festa da escola. Se viessem eu responderia como
médica, claro está, mas eles não sabem. E se o soubessem de igual
modo não o fariam. Esta mãe não é, evidentemente, sueca. Ainda
assim limitou-se a quebrar as regras não escritas perguntando apenas
educadamente se eu lhe poderia telefonar quando estivesse no
hospital. Como lhe assegurei que o faria, abriu-se num sorriso,
explicou-me em duas frases curtas o que a preocupava, voltou a
agradecer e desapareceu na multidão.
A versão breve mas cristalina da Sankta Lucia cantada pelos meus filhos acompanha-me de cada vez que conduzo com escuro e frio (o que não é assim tão invugar, neste país), antes de me perder noutros pensamentos. É
algo que não existia em Portugal, nem faz parte da minha cultura,
embora a minha memória tenha ido repescar lembranças antigas e mal
enquadradas. Mas a gente vai aprendendo que o glögg afinal às
vezes sabe bem e que apesar de não haver presépios há outras
coisas que se também se entranham. Tenho pena que os meus filhos,
apesar de saberem cantar o Olhei para o céu, estava estrelado...
não o façam
da forma espontânea
com que trauteiam as musicas de Natal suecas. Onde é que eu
quero chegar com isto? A lado nenhum. É apenas um relato enviesado e
pessoal de um dia 13 de Dezembro, que não é sequer passível de
qualquer interpretação. É apenas uma descrição do que
aconteceu...